Dezembro de 2018. A maior maternidade do país só tem um anestesista de serviço a fazer um turno de 12 horas na véspera e Dia de Natal. A Maternidade Alfredo da Costa (MAC) está em serviços mínimos e reencaminha para outros hospitais todos os casos não urgentes. Um mês antes, em novembro, o presidente do conselho de administração do Hospital Garcia de Orta denuncia a "necessidade extrema de anestesia". Nos últimos anos, este hospital perdeu cerca de 40% dos anestesistas, afirmou Daniel Ferro. Uma carência que têm afetado as cirurgias, disse na altura o responsável..Estes são apenas dois casos, mas há mais no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Afinal, estão em falta 541 médicos anestesistas, segundo dados dos Censos de Anestesiologia de 2017. Além das muitas dificuldades que o SNS atravessa - greves de enfermeiros, de técnicos de diagnóstico, listas de espera, só para dizer algumas -, a carência destes médicos especialistas é mais um problema que enfrenta quem trabalha e quem se desloca a um hospital público..A falta destes especialistas no SNS não é de agora e é bem evidente nos números dos Censos, uma radiografia ao setor elaborado pelo Colégio da Especialidade de Anestesiologia da Ordem dos Médicos, divulgado no ano passado na Acta Médica Portuguesa. O estudo, que analisou a realidade da profissão em 86 hospitais, estima que há cerca de 1280 anestesistas a trabalhar no SNS, o que dá um rácio de 12,4 profissionais por cem mil habitantes. Em 2014, o rácio era de 12,0..Ao DN, o Ministério da Saúde, através da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), refere que em 2015, eram 1050 anestesistas no SNS e em 2018 contabilizavam-se 1087 profissionais. Ou seja, mais 37 especialistas. Números que têm em conta os profissionais ativos com contrato de trabalho e não os independentes/prestadores de serviços..Problema começa no acesso ao internato.Mas será que há poucos médicos a optarem por esta especialidade? A profissão é pouco atrativa? "Não", responde a todas estas perguntas a presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia (SPA). Maria Rosário Órfão explica ao DN que o problema vem da formação. Considera que não há vagas suficientes no internato. Depois, após o fim da especialidade, o ministério não abre logo os concursos para os recém-especialistas e quando abre não há "vagas suficientes para o SNS", explica..A médica anestesiologista vai, no entanto, mais fundo no problema e começa por referir que a carência destes especialistas está também relacionada com o envelhecimento da população, que precisa cada vez mais de cuidados de saúde, tem mais doenças crónicas e "precisa de mais anestesiologistas, profissionais de outras especialidades e áreas". "Da anestesiologia particularmente porque quando a população é mais velha tem mais doenças, é operada mais vezes, precisa de mais cuidados intensivos, tem mais problemas dolorosos, precisam mais de ir a uma consulta de dor, que é assegurada por anestesiologistas", considera..Nas últimas décadas não se conseguiu acompanhar o aumento das necessidades "exponenciais que foram criadas no SNS nos últimos 20 anos", e essa é uma das razões pela falta de anestesistas, apontada pela direção do Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos. "Desde logo, para indicação cirúrgica (envelhecimento da população, aumento de patologia maligna, maior exigência da população para procedimentos que aumentam a qualidade de vida, etc.); e também ao nível dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica", especifica o Colégio da Especialidade, em resposta escrita ao DN..Quantidade de anestesistas "não está a acompanhar as necessidades".Uma especialidade que cresceu ao longo dos últimos anos e cuja área de trabalho foi alargada, destaca Rosário Órfão. Porque, afinal, anestesiologia é muito mais do que diminuir ou tirar a dor. Um profissional desta especialidade não é só o médico que administra anestesia para uma intervenção cirúrgica. A anestesiologia diz respeito à medicina perioperatória, uma especialidade que trabalha na medicina intensiva, da dor e de emergência. "A medicina perioperatória refere-se à anestesia para a cirurgia mas também a anestesia para exames de diagnóstico e terapêutica", completa a presidente da SPA..Perante a dimensão da profissão, Rosário Órfão não têm dúvidas de que "a quantidade de médicos que fazem a especialidade de anestesiologia não está a acompanhar as necessidades". "É preciso que haja mais médicos com esta especialidade. Tem de haver mais vagas para o internato", defende..Com a carência de especialistas desta área nos hospitais públicos podia-se pensar que a profissão é pouco atrativa. Nada disso. "A anestesiologia, nos últimos anos, é uma das especialidades mais procuradas pelos recém-licenciados em Medicina, sendo hoje difícil que um aluno que não obtenha uma nota muito elevada no exame de admissão à formação pós-graduada ingresse numa vaga em anestesiologia", explica o Colégio da Especialidade da Ordem..Rosário Órfão refere mesmo que a especialidade é "uma das primeiras a ser escolhida". A procura é "enorme", diz a Ordem. E explica porquê: "Pelo desafio que representa uma especialidade transversal, que envolve múltiplas tarefas e funções, na maioria das vezes multidisciplinares, obrigando os anestesiologistas a terem uma visão holística do ser humano e a adquirirem vastos conhecimentos científicos integradores e competências técnicas em diversas áreas da ciência médica." E também o facto de existir uma carência destes profissionais leva a que haja "um acesso mais rápido ao mercado de trabalho"..Um terço dos anestesistas formados nos últimos anos opta por não trabalhar no SNS.Ainda assim, os Censos de Anestesiologia revelam que se formaram em três anos 145 especialistas em anestesiologia e 99 terão ingressado nos quadros médicos dos hospitais do SNS, o que representa 68,5%. "Ou seja, um terço dos jovens especialistas em anestesiologia opta por não celebrar contrato com os hospitais do SNS", lê-se no estudo..Apesar de terem aumentado as vagas no internato da especialidade, o problema mantém-se nos hospitais portugueses. "O Colégio da Especialidade de Anestesiologia fez um esforço grande. Há quatro anos havia cerca de 50 vagas, atualmente são 80 por ano, mas ainda não é suficiente", considera a presidente da SPA..Quer isto dizer que, ao fim de cinco anos - a duração do internato na especialidade -, acabam 80 novos médicos anestesiologistas. "Não existem anestesiologistas suficientes no SNS porque não se formam os suficientes e porque não são logo cativados para o SNS", conclui..E é aqui que entram os concursos que o Ministério da Saúde abre, mas que são lançados muito tarde, às vezes dez a onze meses após o fim do internato, diz Rosário Órfão. É uma das razões, diz, pelas quais os recém-especialistas não ingressam logo no serviço público de saúde.."Acabam a especialidade e o ministério não abre logo concurso. Precisa tanto de anestesiologistas, mas muitas vezes é provável não abrirem 80 vagas de anestesiologistas quando terminam o internato 80. Então alguns não têm lugar no SNS e vão procurar alternativas quer nas clínicas privadas quer em empresas prestadoras de serviço", relata..A Ordem dos Médicos, através do Colégio da Especialidade, considera que atualmente existe "uma regulamentação e organização pós-graduada nacional de excelência, que assegura profissionais de elevada qualidade e competência técnica"."Consideramos que as vagas nacionais atualmente existentes são adequadas à qualidade da formação exigida e são as ajustadas à reposição das necessidades de especialistas que o país vai conhecer nos próximos anos", defende..O Ministério da Saúde, através da ACSS, sublinha que a tutela "tem feito um esforço contínuo ao longo dos últimos anos no sentido de adequar a capacidade formativa no SNS"..A Ordem dos Médicos admite, porém, que há uma "incapacidade de reter no SNS não só os anestesiologistas aí afetos mas também os que saem da formação". A "falta de competitividade do sistema de saúde público" em relação ao setor privado "e até ao mercado externo" é uma das razões apontadas, "apesar do aumento da capacidade formativa anual superior a 50% quando se compara 2019 com a década anterior", explica o Colégio da Especialidade em Anestesiologia..Quanto ganha um anestesista no SNS? E no privado?.E tal como a presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia, a Ordem é da opinião que o Ministério da Saúde "não abre vagas em número adequado para os Serviços de Anestesiologia dos Hospitais do SNS, nem torna atrativa a carreira especial médica para os médicos em geral". E não está só em causa as questões remuneratórias mas também a "estrutura da carreira", ou seja, as condições de trabalho, que "precisam de ser revistas", defende o Colégio da Especialidade..Mas, afinal, quanto ganha um anestesista no SNS? "Um especialista contratado em regime de contrato individual de trabalho por qualquer hospital do SNS, em início de carreira, ganha 2746,24 euros, ilíquidos (cerca de 1600 euros líquidos), sendo a hora paga a 15,84 euros, ilíquidos", responde a direção do Colégio de Anestesiologia da Ordem. Já o privado, explicam-nos, "rege-se pelas leis do mercado, não havendo qualquer tipo de limite máximo"..O caso da MAC.O vencimento destes especialistas foi notícia após a ministra da Saúde, Marta Temido, ter assegurado que perante a falta de anestesistas na Maternidade Alfredo da Costa no Natal, o conselho de administração pagaria 500 euros à hora pedidos para a prestação de serviços de anestesia, mas que, afinal, não tinha sido possível recrutar mais um especialista para a MAC. Na altura, a Ordem dos Médicos assegurou que "tais propostas de contratação por 500 euros à hora não existem" e que se tratava de um mito de Natal..Ao DN, o Colégio de Anestesiologia reforça a posição e esclarece o que diz o ponto 8 do despacho número 3027/2018, publicado em Diário da República, a 23 de março de 2018, que define as orientações gerais para a celebração e/ou renovação de contratos em regime de prestação de serviços de pessoal médico. "Deixa clara a nota de que o valor hora do médico especialista, em regime de prestação de serviço, tem o limite máximo de 29,21 euros (ilíquidos). Excecionalmente, aquele valor pode ser acrescido de 35% a 50%, o que feitas as contas poderá atingir máximos de 39,44 euros na proximidade das grandes cidades, e 43,80 euros, no restante território, sobre autorização especial superior. No caso da MAC, decorre pela lei que aquele valor não poderá ser superior a 39,44 euros.".Má rentabilização dos recursos existentes.Para a presidente da SPA, a solução para a carência de anestesistas nos hospitais públicos passa por "haver mais vagas no internato, cativar as pessoas para o SNS abrindo logo concursos quando acabam a especialidade", descongelar as carreiras médicas, mais concursos para a progressão na carreira, mas também "gerir melhor os recursos existentes"..Tendo em conta que um anestesista atua em diferentes áreas da medicina, "tem de haver uma boa relação e uma boa organização". E isso, defende, "depende dos diretores de serviço, mas também das administrações hospitalares". "Teria de haver uma melhor organização, um melhor aproveitamento dos recursos existentes", conclui..De acordo com o Colégio da Especialidade, a falta de anestesistas é mais preocupante nos hospitais públicos das regiões do interior norte e entro, Alentejo, Algarve e Lisboa e Vale do Tejo. Os Censos da especialidade indicam que só em Lisboa e Vale do Tejo, em 2017, estavam em falta 191 anestesistas, na região centro 119 e no norte 124.