1 O tema das falsas moradas e dos falsos encarregados de educação para conseguir matrícula em algumas escolas é bem mais complicado do que parece à primeira vista. Não pode ser resumido a más práticas de algumas famílias facilmente corrigíveis com ações inspetivas. Ele é consequência da desigualdade escolar, um dos problemas educativos mais difíceis de resolver, justamente porque nele se manifestam o confronto de diferentes interpretações do equilíbrio desejável entre interesses individuais e interesse público, dos valores da diversidade e da segregação social, das diferentes visões da escola pública e da sua missão. A correção da desigualdade escolar requer uma ação continuada de melhoria da qualidade de todas as escolas públicas..2 É normal e louvável que os pais procurem a melhor educação para os seus filhos. Aquelas famílias que não fazem tudo o que está ao seu alcance para proporcionar às suas crianças e jovens a melhor educação e as melhores oportunidades são objeto de censura moral e social. Os casos que agora tiveram tratamento mediático correspondem a práticas frequentes, mais ou menos fraudulentas, por parte de alguns pais, com mais recursos informacionais, que são idênticos a muitos outros casos que se repetem, em todas as grandes cidades, com o acesso às escolas percecionadas pelas famílias como "as melhores"..3 As famílias em causa justificam aquelas práticas com a legitimidade de procurarem o melhor para os seus filhos. Acontece, porém, considerarem com frequência que o melhor significa escolher escolas sem mistura social, contando, para isso, com a conivência ou a cumplicidade de direções de algumas dessas mesmas escolas. A questão complicada aqui é a de saber como se pode fazer, perante as famílias, os professores e as direções das escolas a demonstração das vantagens individuais e coletivas da mistura e da diversidade social. Pois só se poderá melhorar a qualidade de todas as escolas se estivermos dispostos a aumentar a diversidade em cada uma delas..4 Em 1966, há pouco mais de 50 anos, o tema da diversidade escolar esteve no centro do famoso Relatório Coleman, encomendado pelo Congresso americano a propósito da lei de 1964 dos direitos civis que proibia a discriminação racial nos empregos e nos espaços públicos. O estudo então efetuado concluiu, entre outras coisas, que o fator que mais explicava o desempenho dos alunos era a amplitude da mistura de alunos de diferentes origens. O limiar crítico dessa mistura situar-se-ia nos 60%. Ou seja, quando pelo menos 60% dos alunos eram de um determinado grupo cultural ou socioeconómico os valores desse grupo tenderiam a predominar..Se o grupo predominante tivesse poder social e uma orientação de valorização do estudo, o seu efeito sobre a escola seria duplamente positivo. Por um lado, porque o juízo dos pares influencia o comportamento e esforço dos alunos, ou seja, porque os jovens respondem melhor à pressão do seu grupo de referência do que à dos professores ou pais. Portanto, se o grupo de referência valorizasse o estudo, o jovem aluno sentir-se-ia pressionado a estudar. Por outro lado, porque a escola reage à pressão do grupo predominante, no seu funcionamento, na capacidade de atrair bons professores e apoios vários. Concluía-se que o valor positivo do efeito-escola, quando existia, era mais poderoso nos alunos mais fracos..5 Os resultados deste relatório estiveram na base de políticas de discriminação positiva, isto é, de afetação de recursos de forma diferenciada, tendo em conta as necessidades dos alunos ou das escolas, e de políticas dessegregacionistas e de promoção da mistura social e da heterogeneidade nas escolas..O reconhecimento do efeito positivo da mistura e diversidade social gerou na altura, e continua a gerar, perplexidades e reações. Não apenas porque ele é contraintuitivo para pais e professores, isto é, contraria muitas das ideias feitas, de senso comum, sobre a socialização e as sociabilidades, como põe em confronto o que alguns consideram ser o interesse individual e o interesse coletivo..6 É necessário que existam critérios e regras gerais para determinar o acesso à escola, regras que respeitem de forma equilibrada os princípios da igualdade de oportunidades e de escolha das famílias. A associação entre residência e acesso à escola oferece-se como um princípio simples de organização do serviço de educação. Porém, quando a desigualdade social e económica se traduz em segregação residencial este princípio transforma-se numa armadilha. As escolas ficam encerradas nos respetivos territórios, tornando praticamente impossível a concretização da igualdade de oportunidades. A associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos, podendo contribuir para o aumento tanto das desigualdades escolares com das desigualdades sociais..7 Em resumo, os efeitos da desigualdade escolar não me parece que se possam combater com inspeções. E a melhoria de todas as escolas públicas não se faz sem aumentar a heterogeneidade em cada uma delas. Portanto, se é verdade que o que está em causa é reduzir a desigualdade escolar, as políticas para essa resolução não são fáceis nem de desenhar nem de pôr em prática. O debate sobre o tema é por isso fundamental.