Face à IA e ao Algoritmo "será importante criarmos zonas de resistência física e mental, clareiras de silêncio"
Numa anterior entrevista afirmou que "todos os livros que escrevi são consequência de um tempo e lugar. De uma imperiosa e inescapável necessidade". Nesse sentido, que força o motivou a escrever Emoção Artificial?
É um ato de coragem ser hoje um escritor, movido apenas por uma determinação e uma força interior, e com a necessidade de ter uma disciplina e uma vontade férrea para se ser capaz de edificar um percurso artístico e humano sério. Ser um criador que necessita por vezes do recolhimento num tempo que só parece favorecer o conceito gregário de festa. Alguém que escolhe a lentidão do pensamento e a importância da memória histórica e pessoal no meio da voracidade de um mundo que se encaminha para a inteligência artificial - esquecendo a riqueza da inteligência natural - e que normalizou os empobrecimentos e as destruições que assolam a pessoa humana e a Terra. E pretender ainda assumir o rosto em plenitude e contrariar a indiferença perante o objeto artístico e a ideia disseminada em vários sectores da sociedade de que a inconformidade é uma ameaça. E aqui entramos, sem abandonar a esperança, em questões com que se confronta no presente o ser humano: como manter a autonomia e o controlo sobre a própria vida, considerando o potencial de distração e dependência da tecnologia digital que todos crescentemente temos? E a ansiedade e o medo que nos provocam algumas das previsíveis consequências para a vida quotidiana se permitirmos que o nosso destino seja moldado somente em função da ideia de um progresso determinista e inevitável, presidido apenas pelos ditames de certos aspetos sombrios associados à Inteligência Artificial e ao Algoritmo?
Como vê este seu novo livro e o tema que nos apresenta no contexto da sua obra poética?
Um dos meus propósitos é o de procurar expandir o campo de forças e possibilidades e os mundos de linguagem da poesia. Atender à promoção da diversidade de mundividências e de estilos que ela significa e não encerrá-la em caminhos e territórios que eu próprio já percorri. Penso ser possível encontrar uma genealogia e continuidade com outro livro meu, O Acidente, no qual são os objetos que sobem à boca de cena e contam uma história familiar e trágica. E com outros momentos do muito que já escrevi onde irrompe um vivo interesse e uma inescapável inquietação perante a hegemonia do universo tecnológico e as consequências de uma excessiva exposição a algumas das suas criações e gadgets. Emoção Artificial é um livro composto por várias vozes, por vezes contrastantes, que sem perderem a sua individualidade se entretecem numa espécie de coro: advertência, intuição, imaginação, memória acerca de um tempo futuro que ameaça produzir calamidades, mas que pode trazer também emancipações de certas grilhetas psíquicas e comportamentais que nos aprisionam. Obviamente interessou-me pensar poeticamente o modo como a tecnologia e o nosso vício pela inovação podem contribuir para a perda de autenticidade e conduzir-nos a uma aceitação que corroa os princípios dos nossos direitos humanos e liberdades. E refletir de modo quase narrativo e elíptico acerca da importância da Inteligência Artificial (IA) e do Algoritmo em áreas como a saúde, o ensino e a transmissão de conhecimento, as ciências ambientais, a existência de uma imprensa livre e verdadeira, a indústria militar, a ação social e a criação artística, o perigo do direito e a sua aplicação ser "entregue" a algoritmos e a defesa de uma ciência com ética, responsabilidade e horizonte humano.
Emoção é, por definição, uma reação a um estímulo ambiental e cognitivo que produz experiências subjetivas e neurobiológicas. Associamos a emoção ao humano e à nossa relação com o ambiente, com os outros. Ao a irmanar com a palavra "artificial" no título do seu livro quer significar algo novo para aquilo que entendemos como emoção?
Há neste livro a procura de rastrear "algo novo" para o conceito de emoção associado às máquinas e à relação que elas podem ter connosco. E não somente circunscrito à emoção que dizemos as máquinas não sentirem ou ainda não possuírem. E aqui poderíamos falar de avanços significativos na indústria da robótica e da IA, levada a cabo por cientistas ligados ao MIT, e não só, onde já se experimenta a criação de robôs com a capacidade de sentir o que tocam; e também para uma linha de investigação antropológica-filosófica-tecnológica-científica onde as questões da emoção e da consciência ganham crescente pertinência. Referiria duas obras, uma que foi publicada há dias, Robots Souls: Programming in Humanity de Eve Poole, e a outra de Anil Seth que nos endereça para o conceito de consciência: Being You: A New Science of Consciousness. Ambas apontam caminhos novos para o conceito de alma e para a possibilidade de a IA receber uma consciência ética e humana, e para a base biológica da experiência consciente. O livro Robot Souls, explora a ideia de incorporar características como emoções e livre-arbítrio, o nosso junk code, na programação de sistemas de IA. A autora propõe isso como uma solução para dilemas éticos em IA, argumentando que essas características humanas são cruciais para a sobrevivência da sociedade e devem ser integradas ao desenvolvimento da IA, no sentido de tornar a automação "ética". Os humanos selecionaram o melhor da inteligência humana para informar a IA, com a esperança de criar máquinas perfeitas - mas as "falhas" que deixamos de fora são as peças que faltam para garantir que os robôs não sejam perigosos, segundo a visão desta ensaísta. Sugerindo ainda que uma opção seja a de codificar mais humanidade em robôs, presenteando, digamos assim, os robôs com características como empatia e compaixão. E afirma: "É esse junk que está no coração da humanidade. O nosso junk code consiste em emoções humanas, na nossa propensão a erros, na nossa inclinação para contar histórias, no nosso estranho sexto sentido, na nossa capacidade de lidar com a incerteza, um senso inabalável de nosso próprio livre-arbítrio".
Referiu a obra de Anil Seth que endereça o leitor para o conceito de consciência. De que forma o faz a autor?
O seu argumento radical é que não percebemos o mundo como ele é objetivamente, mas sim que somos máquinas de previsão, constantemente inventando nosso mundo e corrigindo os nossos erros em microssegundos, e que agora podemos observar os mecanismos biológicos no cérebro que realizam esse processo de consciência. Inspirando-se na filosofia, biologia, ciência cognitiva, neurociência e inteligência artificial, defende que "os nossos cérebros são máquinas de previsão que constantemente inventam o nosso mundo e depois corrigem os nossos erros, de modo que o nosso sentido de identidade deriva do nosso corpo". O que significa "seres como és" - isto é, ter uma experiência específica e consciente do mundo ao nosso redor e de nós mesmos dentro dele? Recordemos que historicamente, a humanidade considerou a natureza da consciência como uma investigação principalmente espiritual ou filosófica, mas a pesquisa científica parece agora mapear novas teorias e explicações biológicas prováveis para a consciência e a individualidade.
Na apresentação que faz do seu livro deixa a pergunta: "O mundo de agora que tempo e espaço concede ainda à inteligência poética?" Como responde à sua questão?
Assombrados por vigilância algorítmica, sabemos que a nossa identidade agora pode ser reduzida a meros dados que denunciam preferências e desejos. Ao mesmo tempo que por vezes nos conduzem à tomada de decisões exangues que nos endereçaram para o nada, consumível. Quanto à inteligência poética, por natureza a literatura faz perguntas para as quais ainda não há resposta, e traz à superfície realidades ainda não percecionadas sobre o humano. O poeta é aquele cujo olhar sobre os fenómenos e as coisas é simultaneamente microscópio e telescópio. Inteligência poética que a ser praticada em todo o seu ser e estar é um trabalho de sismógrafo e vedor, de guarda-rios e de mergulhador que procura proteger os corais do crude obscurantista e aniquilador. Ao contrário das várias versões das máquinas conversacionais como o ChatGPT, que apenas vasculham as quantidades existentes de dados e geram as suas respostas usando padrões conhecidos de acordo com o princípio da probabilidade estatística, os poemas que se escrevem livre e autenticamente são um soberano risco, uma avalanche de probabilidades porque vão fazendo o seu próprio caminho à medida que são criados e não procuram dar-nos explicações já muito vindimadas. Em vez disso, enquanto fenómenos que brotam da imaginação estética, são como viagens espaciais exploratórias rumo ao desconhecido, criando espaços e firmamentos para a nossa existência inconsolável e perscrutadora.
A poética implica a consciência de que se está vivo? Se assim for, uma máquina pode, consequentemente, produzir obra poética?
Da máquina conversacional ChatGPT, podermos dizer que ela pensa ou sente como um humano? Ou a sua capacidade de imitação limita-se apenas a rastrear o que dentro de nós se encontra já mecanizado, automatizado? E que a sua capacidade de invenção verbal em decifrar o enigma do real, fora dos jogos de linguagem e da acumulação imagética aleatória é muito reduzida? Quem a testou fica surpreendido com a sua capacidade conceptual e material na produção de textos. Porém, como poderá uma máquina, nesta fase ainda embrionária do seu desenvolvimento, reproduzir emoções e estados de alma associados a humanos, à mente humana? É real então a possibilidade, que causa ansiedade e apreensão, de que um dia a máquina nos poderia suplantar e, mais, substituir, não apenas nas profissões onde a escrita intervém diretamente, mas ser indistinguível no plano do pensar e sentir humanos? A máquina praticamente já solucionou o famoso Teste de Turing. Este, recordemos, "testa a capacidade de um computador de exibir comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano, ou indistinguível deste". Não existirão então verdadeiramente em nós humanos, na nossa maneira de pensar, sentir e agir zonas exclusivas, interditas, às quais nenhuma máquina poderia aceder, conhecer, imitar? Como é possível que a máquina consiga dar respostas em situações em que não somente a mente, mas também a emoção claramente atua, fazer-se passar por nós nas suas respostas e preocupações e não o reconhecermos? Talvez pudéssemos pensar sobre a genealogia da Inteligência Artificial. Suas origens, de facto, não remontam à invenção técnica do computador, mas, durante a Segunda Guerra Mundial, a uma grande revolução filosófica: o surgimento nos Estados Unidos do movimento cibernético. Esta corrente propôs definir a mente humana segundo o paradigma da "máquina". Em que a cognição consistia "em receber, controlar, comandar e regular informações do mundo exterior". No seu entendimento "a vida cognitiva de um homem e a de um robô obedeciam a operações análogas." Daí a possibilidade de replicar artificialmente os pensamentos do primeiro. O debate sobre as possíveis qualidades criativas da inteligência artificial trouxe à tona um outro sobre os espaços e limites da criação. Como opera, o que pode fazer acontecer, quais os seus limites, e como defini-la. Entendida através da figura da IA, a complexidade que os processos de criação envolvem adquire uma nova significação. Um robô pode reivindicar a autoria? É perigoso encorajar as máquinas a 'criar'? E o que estão realmente a criar? Que diferença existe entre cópia e original? E toda arte não é, de alguma forma, mimética? Onde começam e terminam os vasos comunicantes entre obra e criador?
"A sociabilidade mecânica é produto da crise dos vínculos, de como os humanos se ligam uns aos outros. Vínculos feridos resultam de uma falta de ligação entre humanos e tentativas de recorrer a máquinas como ajuda para preencher as lacunas nas relações sociais. Crianças robôs, robôs de companhia e robôs terapeutas são o futuro". A citação é retirada da obra An Anthropology of Robots and AI Annihilation Anxiety and Machines, de Kathleen Richardson. Concorda com o excerto aqui reproduzido?
Assistimos por todo o lado a vidas e a comunidades deslaçadas, por carência afetiva, emocional e por aniquilação dos seus lugares e recursos materiais. Perdemos a autenticidade não apenas na relação com o mundo, mas connosco mesmos. E o vínculo humano que nos religava uns aos outros, desde a infância. E que caminho de regresso "a casa" será ainda possível? Depois de tantas perdas, tristezas e aceitações, um sentimento ferido poderá ser restaurado, como quem restaura delicadamente uma peça de porcelana partida? Para muitos a carência começa logo ali na infância. Laços, apegos ou ausência destes revelar-se-ão nucleares no sentimento relacional ou de estranheza com os demais e o mundo ao redor. No livro que publiquei antes de Emoção Artificial, intitulado A Última Pedra há um poema que põe em cena uma criança que tem uma relação especial com uma boneca Tamagotchi. Ou melhor, que se sente ela própria artefacto relacional de alguém ausente ou perdido ou nunca conhecido. Sherry Turkle, autora de uma obra seminal Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other, chama a estes objetos com os quais se estabelecem relações de afetividade "artefactos relacionais", incluindo nesta categoria todos os que permitem e evocam sentimentos afetivos, sejam as bonecas Tamagotchi, os robôs ou os instrumentos musicais. No presente, os tablets e os telemóveis ocupam também esse lugar na vida de aprendizagem (e afetiva?) das nossas crianças. E não só. Vemos o mesmo suceder nos adolescentes e nos adultos. Retirando aos livros um espaço e tempo preciosos, pois nem só de imagem e imaginação vive a criação, o desenvolvimento e o conhecimento humanos, mas de algo que quase foi desaparecendo da aprendizagem: a memória. O virtual domina-nos e a necessidade de nos sentirmos conectados a todo o instante. O que significa ser um humano? O que acontece com a humanidade quando as máquinas não têm nenhum problema em agir como humanos? O que acontece com a memória humana quando ela depende cada vez mais de máquinas. Que destino o nosso quando agimos cada vez mais como autómatos, indiferentes a tanta indigência? Dia após dia apegamo-nos a coisas insatisfatórias. Por certo, com o afã ansioso de outra vida, uma nova identidade. E procuramos. Se não encontramos o que procuramos de verdadeiro no humano a nosso lado, será na tecnologia que encontraremos cada vez mais o apego e o afago de que carecemos. Tal parece-me inevitável. Se não restauramos os laços perdidos com o outro eu que já foi nosso, ou com os outros que poderão vir ao nosso encontro, viveremos porventura em looping, de ansiedade em ansiedade, o pensamento acantonado. Ou a precipitarmo-nos para soluções espontâneas. Que por vezes abrem ainda mais feridas. Esquecidos também de que lá fora estão mar, a montanha e o vento. O rio e as árvores.
Dedica a primeira parte do seu livro aos robôs. Na sua origem etimológica a palavra deve à língua checa: "robota" (servidão). Os robôs que evoluem em Emoção Artificial são mais servos ou mais senhores de um destino?
Os robôs que aparecem nos anos 20 do século XX na peça de Karel Capek eram um símbolo do mundo mecanizado e "substitutos" da figura do operário fabril, estrangulado na sua subjetividade e ao serviço de uma economia de rapina. Um modo do autor nos falar do mundo do trabalho, da desumanização, bem como da violência extrema da Primeira Guerra Mundial que gerou uma destruição inaudita e transformou a morte numa figura tutelar e presente na vida humana associada ao poder objetivo da máquina. Inaugurava-se um tempo que dura até hoje onde várias aniquilações de proveniência distinta reduzem a vitalidade do ser. No livro tentei dar muitas vezes aos personagens robôs um rosto humano e um destino não totalmente sombrio, clareado por encontros inesperados entre si e com os humanos que trouxessem às suas vidas programadas senão júbilo, pelo menos uma trégua. E lhes autorizasse até mesmo acalentar o sonho de serem um dia, como acontece a um deles, robô editor de livros, essa paixão soberana. Claro que façamos o que fizermos estaremos sempre reféns da passagem do tempo, do envelhecimento dos lugares e do desaparecimento de tanto daquilo que amámos. E de tantos que a nosso lado tentaram edificar sentidos e demolir indiferenças. Todavia, nem que seja apenas na esfera privada, deveremos sempre aspirar a viver vidas mais plenas. E, seja qual for a nossa idade ou o ramo de atividade a que nos dedicamos, a tentar manter a autenticidade e a prolongar pelos anos a curiosidade perscrutadora da infância.
Nos seus robôs há uma procura, um desvendar de um mundo que entendemos como nosso, humano. Podemos vê-lo como intrusos num espaço e tempo humanos que não deveria ser um território da máquina?
Perante a hegemónica influência da tecnologia nas nossas sociedades, e que não é nova, pois é uma das consequências do mundo que saiu da Primeira Guerra Mundial, existe sempre a possibilidade de retirarmo-nos do mundo para uma montanha mágica ou para um bosque sagrado interior. A ação é com cada um e devemos respeitar a diversidade e a criatividade alheias. Porém, se nosso for o espaço e tempo da cidade contemporânea, aí homem e máquina são indistinguíveis no desvendar de um conhecimento e destino comum na terra. Que deverá incluir também o animal e tudo o que na natureza releva do belo e do bem e do saudável, o não contaminado por pesticidas e outros tóxicos. Um dos personagens robôs do livro vai visitar um horto municipal, tentando perscrutar um saber ancestral, à escuta de uma linguagem subterrânea que lhe (nos) poderia trazer benefícios. Os robôs há muito realizam inúmeras tarefas em áreas muito sensíveis da existência da pessoa humana ou em trabalhos cujo índice de perigosidade elevada requer um nível de sofisticação e resistência imenso. E não esqueçamos os inúmeros ofícios que a IA irá trágica e inevitavelmente despojar do humano, pois as questões da velocidade, quantidade, flexibilidade e ausência de preocupações em fazer respeitar os direitos laborais irão tornar estas novas máquinas inteligentes (e não apenas os robôs) muito apelativas para o mundo empresarial. Mas penso que a sua pergunta aponta também noutra direção. A noção dos robôs como intrusos pressuporia talvez a existência de um território (físico e mental) de autenticidade que teríamos perdido e que era pertença apenas dos humanos e dos animais e da flora que nos alimenta. Território esse onde o medo da máquina (robôs, supercomputadores) seja uma realidade palpável. Mas não será também esse medo o medo de um outro (eu) que já foi "nosso" e que alienámos ou recusamos? No meu livro de antecipação, chamemos-lhe assim, os robôs, ainda que autónomos, não pensam revoltar-se e assombrar a humanidade com os seus atos. Imaginei muitos deles como sendo fraternos e atentos ao nosso estado físico e mental, à civilização que estamos a criar e à sobrevivência do planeta.
"E se, sem absurdo, na sociedade do futuro os robots forem mais emotivos, compreensivos, compassivos do que os próprios humanos?" A pergunta é retirada daquilo que escreve na contracapa do seu livro. Dela extraio a partícula "sem absurdo". Significa que vê como plausível este caminho futuro?
Vivemos um tempo (mas não foi sempre assim?) em que a vitalidade esperançosa que poderia ser uma das definições da noção de existência deu lugar em muitos sítios da Terra a uma competição desmedida e desesperada (quando não à própria destruição anímica e física) entre as pessoas, muitas vezes na mera luta pela sobrevivência. E isto tem consequências graves na psique humana e nas relações humanas. E no tipo de sociedades que desejamos edificar ou nos esperam irremediavelmente. Todavia, não tenho certezas, pressupostos claros e evidentes, apenas teço diagnósticos, pressentimentos de sintomas e previsões efémeras. Prefiro permanecer cativo da descoberta, do inesperado, da imprevisibilidade e da criatividade que o outro traz consigo. Seduzido pela capacidade de reinvenção, importa talvez matizar e enriquecer as respostas que vão sendo dadas em cada momento ao enigma de existir, pois a aprendizagem de ser e de viver é contínua e nunca cessa. Os personagens robôs que evoluem neste livro não têm complacência nem demasiada tentação celebratória acerca do seu (nosso) destino; permanecem atentos às asperezas e rugosidades do mundo e das pessoas, sim; mas também aos lugares e aos momentos de afeto e às palavras que se questionam e examinam alternativas e mudanças de rumo. Robôs que a partir da sua singularidade opinativa e comportamental caminham até posições de universalidade e amor por quem se aproxima com a dádiva do rosto. Daí que as "questões" múltiplas que nos lançam vivam longe de qualquer apriorismo. Alguns deles, reivindicam, parece-me a mim que os conheci primeiro, o que chamaria a maleabilidade do bailarino, do poeta, ao não se deixarem cativar complacentemente por tudo aquilo que veem e escutam sobre um futuro radioso ou pétreo. Visceralmente sabem o que significa para as pessoas fazerem fila, numa rua sem destino de uma cidade inóspita, para comer uma refeição quente, mas também agradecer encarecidamente a quem lhes chega umas moedas, uma sandes, uma palavra não avulsa; conhecem casas abrigo para mulheres vitimas de violência doméstica, e sentiram o abandono familiar na infância e outras vilanias inomináveis, mas não adotam qualquer discurso vitimizador, ressentido ou rancoroso; ao invés, apesar de terem vivido muita da precaridade e da ignomínia do tempo encontraram uma força desconhecida dentro de si e por isso são orgulhosos, altivos e solares, mesmo quando a noite escura da alma é ensurdecedora. Perseguem uma necessidade de apego, afago e amor possível. Por sorte ou trabalho interior não se entrincheiram ou caíram para sempre em poços psíquicos e sinistros; antes conversam, riem muito e dançam e nadam procurando essas clareiras, esses lugares de passagem, sem permanecerem demasiado tempo em lugar nenhum rígido do pensamento ou da emoção ou da ação. São robôs que procuram ver os outros de maneira justa, almejando expandir a consciência e o contacto, pois sabem que na vida não está apenas em jogo a ciência e a tecnologia, nem o lucro, nem a delapidação dos recursos da terra. Não veiculam as miragens e as perceções geladas do capitalismo mais selvagem, nem as manipulações a que o transhumanismo convida, pois ainda sentem o chamamento de um olhar intenso e carnal e as enormes implicações da empatia e do desejo na vida de todos os dias. E compreenderam há muito que têm de ser desconcertadamente "adaptáveis", embora seja a resistência interior e a ação inteligente e livre que verdadeiramente os seduz quando vão a caminho do que todos (robôs e humanos) não sabemos ainda.
A segunda parte do seu livro tem por título "algoritmo". Este é, numa explicação simplista, um procedimento preciso, não ambíguo, padronizado, eficiente e correto. Ao trazê-lo para a sua poesia quer tornar o algoritmo cativo da imprevisibilidade, da criatividade? Subjugá-lo à poesia ao invés de permitir ao algoritmo ser um criador de poesia?
Existe apreensão acerca da possibilidade de o indivíduo ver a sua existência carnal e espiritual reduzida a digital e numérica. Os versos em torno da noção de Algoritmo são epigramáticos, imagéticos, pois de algum modo simulam as pesquisas que fazemos e que partem muitas vezes de uma palavra, uma frase, um vestígio a necessitar de aclaração. O tom é propositadamente de contensão, frugalidade face à enxurrada lexical e imagética que nos cerca, oriunda do excesso de ecrãs, insistentemente chamando-nos a atenção para acontecimentos de natureza transcendental, clamam eles; ao mesmo tempo que nos distraem do outro trágico e vital que acontece lá fora entre as pessoas, as coisas e a natureza, direcionam-nos para a compra e venda de produtos. Daí eu procurar aquilo que o algoritmo não conhece, alcança, compreende; ou em alternativa colocá-lo noutros territórios, praias e jogos infantis aonde poderá libertar-se da ideia corporativa de influenciar os nossos gostos e desejos mais íntimos. Pois um dos riscos maiores que corremos é que antes mesmo de conseguirmos assimilar o alcance e as consequências da IA e do Algoritmo estes se implementarem na nossa consciência e prosseguirem turvando a nossa vontade. Do ponto de vista militar, médico, tecnológico, filosófico, existencial o que durante muito tempo foi especulativo, puro devaneio, tornou-se hoje concreto, real e quotidiano. Será porventura importante criarmos zonas de resistência física e mental, clareiras de silêncio e meditação e investigação filosófica e científica alternativas, antes de agirmos conjuntamente em aprendizagem contínua. Um dos lugares da poesia poderá ser o de procurar examinar o presente em busca de sinais de uma qualquer força revigorante. Cada um de nós deve em consciência interrogar-se acerca do seu empenho na mudança e na resistência às várias formas de manipulação e às tentativas reais de aniquilação da alegria de viver que nos chegam de vários quadrantes. O futuro, moldado pela coragem e pela verdade, desafia a imaginação e a ação.
Como é ser um humano
perguntou o robot?
Viver com medo de que aconteça
um acidente a quem amámos;
sentir alegria depois da incerteza
de um exame médico;
trabalhar com perícia os materiais
da sombra: a tristeza e a mágoa;
repartir a luz que acumulámos desde
a infância com velhos e crianças;
cinzelar sulcos: rios diante da discórdia
e lavrar sílabas de harmonia;
conversar com os outros sentado
numa cadeira e não numa trípode;
ser cativo de um rosto, um corpo,
um sorriso até depois da morte.
In Emoção Artificial, p. 54 (edição Gradiva)