O Grupo Desportivo Fabril do Barreiro é hoje um clube perdido no Campeonato de Portugal que teve direito a alguns dias de fama graças à Taça de Portugal, pois irá receber este sábado (14.30 horas) o FC Porto. Entre as novas gerações de adeptos, poucos serão aqueles que sabem que o Fabril teve os seus tempos áureos nas décadas de 1950, 1960 e 1970, durante as quais esteve na I Divisão com o nome de CUF (Companhia União Fabril), que era uma instituição de referência em Portugal.."O que o País não tem a CUF produz." Era este o lema de Alfredo da Silva quando em 1898 criou um grande grupo industrial, comercial, financeiro e, mais tarde, desportivo em Portugal. Na realidade o Grupo Desportivo da CUF só foi fundado a 27 de janeiro de 1937, em Lisboa. "Patrões e trabalhadores entenderam fundar um clube desportivo. E quando se transferiu para a margem sul, fez-se uma cidade desportiva como não havia em Portugal. Na Europa, talvez só comparável à da Philips [PSV Eindhoven], na Holanda, que tinha os mesmos moldes, mas não tinha tantos operários e atletas", recorda Faustino Mestre, que se orgulha de ser o presidente com mais tempo à frente da gestão do clube.."A CUF foi mais que um clube. Estava ligado a uma classe operária que se revia na sua fábrica", conta, lembrando que essa identificação começou com Alfredo da Silva, que morreu em 1942, mas que deixou quem continuasse a obra na companhia, que começou por produzir sabões, velas e óleos vegetais, mas que depois estendeu a atividade aos adubos, tabaco, navegação, banca e seguradoras.."Todos trabalhavam para o mesmo e o patrão era venerado, afinal todos gostam de quem os trata bem", justifica Faustino Mestre que, com a saudade de quem viveu os tempos áureos da CUF, lembra que todos se identificavam com um clube que tinha todas as modalidades. "A CUF tinha o seu hospital, onde nasciam todos os filhos dos operários, tinha um bairro onde vivíamos operários e uma escola para as crianças. Não faltava nada. Até existia uma colónia de férias perto da Praia das Maçãs", descreve, classificando como "uma coisa incrível" aquela empresa que tinha "15 trabalhadores e pagava salários acima do normal relativamente a outras, por isso todos queriam trabalhar na CUF"..Atualmente, naquele perímetro onde estavam instaladas as várias valências da empresa, restam apenas vestígios e entre eles uma parte da bancada do Campo de Santa Bárbara, as primeiras instalações do grupo desportivo, no meio das fábricas, onde começou por existir um campo relvado, cuja relva não sobrevivia por causa do fumo dos químicos. Foi por isso que, em 1965, o Grupo Desportivo da CUF mudou para o Lavradio, onde nasceu uma cidade desportiva, cujo estádio foi batizado com o nome de Alfredo da Silva, o "homem do povo" que concebeu um projeto empresarial de sucesso iniciado ainda no período monárquico, mas que atravessou o regime de Salazar até entrar em decadência no pós revolução do 25 de abril de 1974..No Lavradio, "o clube teve uma projeção enorme", recorda Faustino Mestre, lembrando que chegou a disputar as provas europeias e em 1965 esteve à beira de eliminar o AC Milan da Taça das Cidades com Feira (antecessora da Taça UEFA). "Fomos escandalosamente roubados em Itália", lamenta, recordando com saudade a vitória por 2-0 em casa..Apesar de tudo, a CUF nunca lutou por títulos o que, de acordo com Faustino Mestre, tem uma explicação: "Apesar da invejável situação financeira, os patrões nunca quiseram investir no clube porque eles eram sportinguistas e metiam muito dinheiro no Sporting. Como tal, não queriam que outro clube fizesse frente ao Sporting", frisou, lembrando que "a CUF era mais um clube dos trabalhadores" e "só tinha jogadores que trabalhavam na fábrica"..Um dos mais famosos foi Manuel Fernandes, que dividia a arte de marcar golos com a de serralheiro mecânico. "Só deixou de trabalhar quando foi para o Sporting", frisou o presidente, revelando que o goleador "apresentava-se todos os dias às oito da manhã na oficina", apesar de os atletas terem "horários reduzidos para que pudessem treinar". Uma coisa é certa: "Todos tinham o seu lugar garantido na fábrica quando deixassem de jogar.".A realidade é agora bem diferente. Longe vão os tempos de prosperidade. As fábricas já não existem, resiste o estádio e o impressionante complexo desportivo do agora denominado Fabril do Barreiro, que este sábado recebe o campeão nacional FC Porto, e que se orgulha de ser "o clube que mais juventude movimenta no sul do país"..Com quase "quase quatro mil sócios", Faustino Mestre orgulha-se de dirigir um clube "sem dívidas" porque "não gasta mais do que ganha" e tem o orçamento "mais baixo do Campeonato de Portugal". "Temos à volta de quatro mil euros para gastar por mês", refere, acrescentando que as receitas vêm da quotização, que em tempos de pandemia "diminuiu", mas sobretudo das escolinhas de futebol, pois cada miúdo paga 30 euros mensais. Esta saúde financeira tem despertado a cobiça de potenciais investidores: "Devemos ser o clube mais assediado, tive 16 propostas para constituição de uma SAD e tenho recusado todas.".Apesar de "alguns sócios do Fabril serem os filhos e netos dos operários", a atual direção está à procura de alavancar o futuro do clube, com base numa nova identidade. "Atualmente já não há qualquer identificação com a CUF, que terminou com o fim da fábrica. Por isso, terão de ser os jovens, com vários anos de casa, a criar uma nova identidade", diz Mestre, que aponta ao futuro com um sonho: "Não vou entrar nas maluquices que alguns entraram para chegar à I Divisão, mas tenho o sonho de lá regressar com o nome de CUF." É com brilho nos olhos que o diz, revelando que o trunfo na manga tem a ver com a reestruturação patrimonial que está em curso e que servirá para "relançar" o clube..Nesse sentido, está para breve a escritura que irá permitir passar para a posse do Fabril os terrenos do perímetro do estádio Alfredo da Silva. Aliás, o clube tem desde o ano 2000 o direito de superfície, por 50 anos, de toda a cidade desportiva, mas agora o Grupo Mello prepara-se para vender os terrenos a outra entidade e foi aí que a direção encontrou a forma de recuperar o património: "Prescindimos dos 30 anos de direito de superfície para que nos fosse doado o perímetro do estádio e, além disso, concedem-nos por 30 anos um terreno onde vão construir três campos de futebol, além de um novo pavilhão, uma vez que o que existe é uma fonte de prejuízos e vai abaixo.".A escritura será feita até junho do próximo ano e, depois de assinada, irá começar uma nova batalha. "Nesse acordo formalizado em 2000, a direção da altura acedeu em mudar o nome do clube para Fabril em troca dos tais 50 anos de direito de superfície sobre todo o complexo desportivo, ao mesmo tempo que prescindiu do direito de entrar com uma ação em tribunal, de usucapião, para usar o nome CUF", conta Faustino Mestre, indignado com todo o processo que deixou o clube na falência: "Não tenho dúvida que meteram algum dinheiro ao bolso, até porque os nossos terrenos da Fonte das Ratas foram vendidos para construção de prédios e no clube entrou... zero.".Faustino Mestre não esconde a revolta que lhe invade a alma por causa de todo o processo que vitimou o clube após a revolução do 25 de abril e que obrigou à primeira mudança de nome. "A Quimigal é o período comunista do clube. Estou à vontade para falar sobre o mal que o Partido Comunista fez a esta casa porque na minha família éramos todos militantes", assume, passando a explicar: "Houve uma parte da fábrica que continuou a ser CUF e a outra Quimigal. Os patrões continuaram a subsidiar o clube na mesma proporção, mas sugeriram ele mudasse o nome para Quimigal. Só que a gestão passou a ser igual à dos clubes da União Soviética, rebentaram com o dinheiro todo, até que a empresa retirou o tapete. A partir daí o clube degradou-se.".Faustino Mestre acompanhou todo o processo com "enorme desgosto" e até procurou inverter a situação. "Eu e mais uma meia dúzia de jovens éramos, na altura, os meninos bonitos de Álvaro Cunhal e cheguei a dizer-lhe que as coisas não estavam a correr bem, mas de pouco valeu", revelou, deixando uma garantia: "Se não fosse o 25 de abril, a CUF era uma força desportiva imparável. O problema foi que as pessoas mais incapazes, que não sabiam ler nem escrever, tomaram conta da fábrica após a revolução e destruíram os valores e tudo o que havia de bom.".Nos últimos anos, o Grupo Desportivo Fabril limitou-se a lutar pela sobrevivência, mas agora é hora de voltar a sonhar e o jogo com o FC Porto pode até ser uma forma de dar força a esse desejo de regressar aos tempos gloriosos, outra vez com o nome de CUF..O plantel do Fabril do Barreiro que este sábado vai defrontar o FC Porto para a 3.ª eliminatória da Taça de Portugal é quase todo amador. A exceção é o brasileiro Jairo que, porque a sua mulher estar grávida, trocou o futebol indiano por Portugal, onde pretende ficar até acabar a pandemia. Para se manter em competição, aos 27 anos, aceitou suportar todas as despesas da transferência - cerca dois mil euros - e concordou receber 300 euros por mês..De resto, 90% dos futebolistas são estudantes como o guarda-redes Daniel Júnior, que frequenta o curso de Gestão e Produção de Cozinha, na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. "Tem sido complicado conciliar, até porque tenho de pedir aos professores para sair mais cedo das aulas para ir treinar. E para chegar a horas nada pode falhar, saio a correr para o Metro, depois mais uma corrida até ao barco e depois ainda outra até ao estádio", conta o jovem de 22 anos, revelando que esta semana tem sido mais calma graças às aulas online. Daniel já trabalhou na restauração, mas agora dá prioridade ao futebol. "Se não der", o curso permite-lhe ter "uma segunda via". E o jogo com o FC Porto até pode ser "trampolim"..Leonildo Soares é um caso peculiar no Fabril, afinal a pandemia de obrigou-o a mudar de ramo. Sem clientes, deixou de ser motorista de Uber em fevereiro e agora trabalha na associação de solidariedade Criar-t como operacional do Projeto Linha 65, que se dedica a ajudar pessoas carenciadas (idosos e sem abrigo) com entrega de refeições durante a pandemia.."Faço entregas com uma carrinha. No início não folgava, mas quando começaram os jogos passei a não trabalhar aos domingos", revela o jogador de 28 anos, que este sábado terá de "trocar com um colega" para jogar com o FC Porto, uma partida que este internacional por São Tomé e Príncipe não quer perder. "Já joguei frente ao Gana e Marrocos, mas jogar em Portugal com o campeão nacional é diferente. É algo que nunca vivi", assume, assumindo que "ganhar" está no seu pensamento: "Pode acontecer um milagre."