"Experimentei ecstasy pela primeira vez no confinamento"

Que efeito teve a pandemia no mercado das "drogas"? Enquanto ocorre <a href="https://www.sicad.pt/pt/Paginas/detalhe.aspx?itemId=48&lista=SICAD_CAMPANHAS&bkUrl=BK/" target="_blank">um estudo </a><a href="https://www.sicad.pt/pt/Paginas/detalhe.aspx?itemId=48&lista=SICAD_CAMPANHAS&bkUrl=BK/" target="_blank">europeu</a>, o DN ouviu consumidores e especialistas. Houve de tudo: quem se iniciasse nos psicadélicos e até em "drogas de festa" como o MDMA, quem intensificasse consumos, quem os diminuísse ou procurasse tratamento. E quem começasse a vender.
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"Sou a consumidora mais betinha." É assim que Maria, que não se chama Maria - nesta reportagem, todos os nomes de quem relata na primeira pessoa consumos de substâncias ilegais foram alterados - se apresenta. E sim, ela não é de todo o tipo de pessoa que tipicamente, no imaginário popular, se associa a consumo de drogas.

Com 39 anos, funcionária numa instituição do Estado, vive com o marido mais dois filhos pequenos e passou os confinamentos em teletrabalho. Consumidora mais ou menos habitual de canábis, foi durante a pandemia que se iniciou no MDMA (ecstasy) com o marido - duas vezes, quando os miúdos não estavam. "Nunca tinha consumido, experimentei e repeti. Tomámos à hora do almoço e passámos a tarde a dançar, em modo festa. Estou ansiosa por poder experimentar isto em grupo, em comunhão com pessoas."

Acha que iria experimentar a metilenodioximetanfetamina, conhecida como "a droga do amor" e muito relacionada com a cultura do nighclubbing e da dança, de qualquer modo, mas "o facto de o fazer durante a pandemia permitiu um balão de oxigénio muito grande. É que ter dois miúdos pequenos com muito pouco apoio estes meses todos em casa... Pensei: "Isto é uma boa droga para se estivermos sem miúdos, para nos libertarmos"". A compra, em comprimidos, fez-se num "dealer [vendedor] conhecido de um amigo". Uma exceção na via mais habitual das suas compras de substâncias, que é a net. "Uso canábis comprada online, em líquido, para o vaporizador."

Foi também online que comprou LSD - dietilamida de ácido lisérgico, o alucinógeno a que se costuma dar o nome de "ácido" -, a um fornecedor recomendado por um amigo, mas ainda não usou. "Entrei na comunidade psicadélica, em que há desde gente das neurociências e psicologia até xamãnicos, e faço parte de um grupo que disponibiliza informação sobre psicadélicos, o SafeJourney. Há um renascimento destas drogas, cujo consumo não está normalmente integrado nos inquéritos. Durante o confinamento também fiz uma sessão com cogumelos mágicos, assistida pelo meu marido."

Com os cogumelos psicadélicos - que são "cultivados" por um amigo, em casa ("Há muita gente que faz isso, compra-se o pack todo online para o cultivo") - não foi a primeira vez, porém: a primeira aconteceu com um psiquiatra, conta, a rir. "Sou mesmo betinha nisto. Conto as experiências à minha psicóloga, escrevo sobre elas... LSD ainda não fiz porque não sei se quero experimentar a primeira vez sem acompanhamento de alguém que já conheça." Fazer as "viagens" acompanhado por alguém que tenha experiência prévia com este tipo de substância ou esteja "sóbrio" é uma precaução aconselhável: há história de episódios dramáticos, alguns mesmo mortais (por exemplo saltar de uma janela porque a pessoa crê que pode voar), associados a este tipo consumo.

Outra das entrevistadas pelo DN, também lisboeta como Maria mas que não quis dar mais referências, como idade ou profissão, assumiu igualmente ter começado a usar substâncias psicadélicas - MD, variedade de MDMA, e 2C-B (2,5-dimetoxi-4-bromofenetilamina, de efeito semelhante ao MDMA) - durante a pandemia, por motivos próximos daqueles que Maria apresenta: "A razão... Acho que nem tinha pensado muito nisso até hoje, na altura foi só um "bora experimentar, deve ser giro" mas acho que faz sentido dizer que estava há meses confinada em casa a gerir família grande com alguns problemas e foi um bom escape."

André, como Maria, está longe do perfil atribuído aos "drogados": tem 30 anos, é analista financeiro numa empresa privada e está em teletrabalho desde março de 2020.

"Consumo drogas recreativamente", diz ao DN. "Antes da pandemia saía bastante à noite - usava cocaína, pastilhas [MDMA], ganzas [canábis] e ketamina." Mas foi a ketamina, explica, que o fez responder a um apelo, no Twitter, dirigido a quem tivesse consumido substâncias durante a pandemia e estivesse disponível para falar disso com esta jornalista. "É que o meu consumo se agravou um bocado. Porque faço micro-dosing, ou seja, uso quantidades muito pequenas, que me permitem ter uma moca e manter-me funcional - passado uma hora continuo o meu dia de trabalho. E em teletrabalho, só em casa, sem ninguém a julgar-me, tornou-se um hábito." O que, comenta com auto-ironia, "não é fantástico."

Apesar de considerar que a ketamina - também conhecida como K ou special K, muito usada como anestesiante veterinário mas também na medicina humana (ultimamente inclusive como antidepressivo), e que na qualidade de "droga de abuso" é integrada no grupo dos psicadélicos - não "agarra", ou seja, não causa dependência, André considera que ter um efeito tão curto nas pequenas doses a torna "demasiado fácil". Resultado: "Houve períodos em que usava todos os dias. Senti que se estava a tornar o normal e experimentei parar."

Começou a usar este medicamento (criado em 1965, e cujo uso recreativo se iniciou na década seguinte), em 2014. "É uma droga muito específica, que ficou muito popular em Portugal há três ou quatro anos. É um dissociativo, tem uma coisa meio trippy, meio viagem, mas sem alucinação visual. Como estares num sonho acordado: vês o mundo tal como está mas o feeling é bastante diferente. É um ácido light, introspetivo, muito gerível." Paradoxalmente, é esse ser gerível que torna a K, no entender de André, perigosa. "Antes um grama dava-me para uma semana, agora já não. Quero parar, acho um péssimo hábito. Não é um vício, mas é fácil criar o hábito. Como é de compromisso menor que outras mais pesadas acaba por ser enganosa. E acho que pode afetar em termos cognitivos e de memória."

Compra sempre a pessoas que conhece e nunca teve dificuldade em comprar durante todo o período da pandemia, mas o preço subiu no fim do verão passado. "Era 40 euros o grama, agora é 50. Vem de Berlim. Havia um grande dealer em Lisboa que desapareceu e a partir dessa altura o preço subiu." Continuou também a fumar erva (flor seca de canábis) - "Vou sempre fumando toda a minha vida, já nem me lembro de não fumar" - e também fiz cocaína algumas vezes, mas não sozinho: na versão noite da pandemia, com outras pessoas, ao fim de semana. Mas não gosto de cocaína, em Lisboa é nojenta. E nunca falta, se estiveres disposto a fazer laxante ou ben-u-ron, que é o que misturam para cortar. Hoje em dia é só lixo." Ri.

Uma coisa que impressionou André neste contexto foi "a quantidade de pessoas que começaram a vender drogas. Por precariedade, por falta de alternativas, juntaram dinheiro para comprar em quantidade e entraram no negócio. Apareceram uns dez dealers novos durante a pandemia." Alguns, garante, eram pessoas com quem saía à noite. "Quatro pelo menos. Não vendiam antes, e começaram agora. De um dia para o outro tinham a operação montada." Suspira. "Como consumidor não posso julgar. Mas era incapaz, creio. Sou um privilegiado, porém. Estive sempre a trabalhar e sempre a receber, relativamente bem, e em casa. Sou, como a economista Susana Peralta disse, burguesia do teletrabalho."

Estas três experiências podiam ser só aquilo a que se chama um outlier - exceções, fora de tendência. Mas João Pedro Matias, epidemiologista da unidade de saúde pública do Observatório Europeu das Drogas e Toxicodependência (OEDT), crê que não. Numa entrevista ao projeto Safe Journey, precisamente sobre o tema das drogas psicadélicas na pandemia, adianta que "uma das substâncias em que vimos aumentos de consumo foi a LSD - durante o primeiro confinamento, por volta de março, abril, vimos que foi um fenómeno a nível europeu, com muitas referências a consumos de LSD em casa, de pessoas que nunca tinham experimentado antes mas que por estarem confinadas, por estarem em processos de ansiedade, muitas vezes tentaram ter uma nova visão, uma visão diferente da realidade. Foram principalmente essas as razoes que apontaram para experimentarem pela primeira vez com drogas psicadélicas."

Estarem fechadas em casa, reafirma ao DN, propiciou que se fizessem este tipo de experiências, de "fuga" mas também de "autoconhecimento". Um radical "ir para fora cá dentro" mas que associa a "populações muito específicas". Isto, explica, "liga-se um pouco à ciência dos psicadélicos que surgiu nos últimos anos. As pessoas que os usam acham que são uma classe à parte dentro dos consumidores de drogas. É verdade que há muito estudo relacionado com o potencial dos psicadélicos no combate à doença mental, mas é preciso ter em consideração que este consumo também causa problemas. A Kosmicare [organização sem fins lucrativos que se apresenta como "idealizando um mundo onde as drogas são usadas com liberdade e sabedoria" e que fornece informação e cuidados a quem as usa] abriu uma consulta para os consumidores de psicadélicos."

Quanto à ketamina, embora se trate de uma substância pouco consumida pela população em geral, o epidemiologista sublinha que é "daquelas em relação às quais foi reportado um maior aumento de consumo durante a pandemia." O motivo vai ao encontro da explicação de André: "É uma droga com a qual é mais fácil lidar num contexto "sozinho em casa" que por exemplo o MDMA."

O novo inquérito europeu online, que está a decorrer desde meio de março, só deverá ter resultados dentro de duas semanas, mas já há, a partir da análise das águas residuais, algumas ideias sobre a forma como evoluíram os consumos. Surpreendentemente, os de cocaína, uma droga associada à noite e às discotecas, não parecem ter diminuído - um dos entrevistados pelo DN é disso exemplo: Mário, de 52 anos, continuou a usar esta droga ao fim de semana com um pequeno grupo de amigos, no tal "contexto noite", com copos e dança, de que fala André, e não reporta dificuldade em comprar nem alteração no preço ou na qualidade. Encontrou até, reporta, um novo dealer que oferece um grama por cada cinco que se compre ("Juntamo-nos e compramos para todos e ficamos com um de borla, é fixe").

Também em relação à canábis, a substância mais popular, não terá havido globalmente grande alteração no uso: "Os níveis nas águas residuais mantiveram-se estáveis." João Pedro Matias crê que ocorreu "um equilíbrio entre as pessoas que deixaram e as que fumam mais. Porque quem consumia mais frequentemente começou a consumir mais e os que consumiam menos frequentemente consumiram menos ou pararam."

Entre os consumidores de canábis que falaram com o DN há quem não tenha alterado o padrão de consumo. Mas a maioria aumentou a intensidade. Caso de Alexandre, 24 anos, que tem estado confinado a acabar uma tese de mestrado e relata estar a fumar mais. "Gasto cerca de 80 euros por mês em erva e antes gastava 50/60. Esta diferença de gastos tem a ver não só com o meu aumento de consumo, mas também com o preço. Antes da pandemia conseguia arranjar facilmente a mais ou menos 5 euros o grama, agora compro sempre a 7/8 euros."

Houve um momento em que o produto esteve quase impossível de obter, no início do primeiro confinamento. Praticamente todos os entrevistados que consomem canábis se referem a essa escassez e ao aumento de preço, e responsáveis da política de droga como João Goulão, do SICAD, já o confirmaram publicamente.

Alexandre, que fuma com regularidade há cerca de seis anos, queixa-se até de que lhe chegaram a vender erva sem THC (tetrahidrocanabidiol, o componente estupefaciente da canábis). Quanto às vias de compra, que se tornaram um pouco mais complicadas em contexto de pandemia, pelo facto de haver muito poucas pessoas na rua e muito mais controlo da circulação pelas autoridades, assume que já antes da pandemia usava aquilo que tem sido designado de "uberização" do negócio e que os analistas consideram ter-se intensificado no contexto pandémico.

"Esses novos circuitos já existiam antes do início da pandemia", informa. "Aliás uma das formas que mais utilizo para adquirir é exatamente essa, através de plataformas como o WhatsApp e Telegram [que são supostamente mais seguras pela sua comunicação encriptada] e de um modelo de entrega relativamente semelhante ao da Uber Eats, com uma lista inclusive das possibilidades de escolha, todas elas de canábis mas de variedades diferentes. O que notei foi que houve um aumento de "clientela" que surgiu com a pandemia e que recorreu a estes serviços de entrega com mais frequência." Tendo-se dado conta da existência destes circuitos no final de 2019, admite que já existissem há bastante tempo: "Não têm "um acesso propriamente "aberto ao público" nem estão referenciados nas redes sociais, é a comunidade fumadora que lhes dá acesso." Ou seja, funcionam por boca a boca.

A dificuldade de acesso à canábis no primeiro confinamento teve, informa João Pedro Matias, ainda mais relevo na resina (haxixe, geralmente proveniente do Norte de África) que na erva. E os novos circuitos intensificaram-se: "O mercado adaptou-se muito rapidamente. Temos reportes de que inclusive entregam drogas disfarçados de Uber Eats e Glovo. E houve também no que respeita à canábis muita gente a começar a cultivar para uso próprio."

Isso mesmo parece retirar-se dos números do Relatório Anual de Segurança Interna relativo a 2020: no crime de cultivo para consumo foi registado um aumento de 104,6%, ou seja, mais que duplicaram os casos identificados.

Em contraste, na deteção de crimes de tráfico houve uma quebra de mais de um terço (34,2%) e nos outros crimes respeitantes a estupefacientes - supõe-se que nestes se refere sobretudo o consumo que ainda é penalizado como crime, ou seja quando a quantidade apreendida é superior ao cálculo de doses para 10 dias, e que nos últimos anos tem vindo sempre a aumentar - de mais de metade (56,7%). Em consonância com esta informação, o número de apreensões também desceu bastante. Ainda assim, e contrastando com a escassez aquilo que os consumidores e especialistas referem - geralmente um aumento da quantidade apreendida indicia um aumento da droga em circulação -, as polícias apreenderam uma quantidade recorde de haxixe - 35,3 toneladas, mais 593% que em 2019. Frisa o RASI: "No que respeita ao tráfico de haxixe por via marítima, registou-se aumento de transporte entre a costa marroquina e a costa sul de Portugal e aumento das quantidades apreendidas."

Aliás, a via marítima terá sido a mais utilizada quer para a canábis (que o RASI designa sempre como "haxixe", não se percebendo se inclui a marijuana, já que esta não é referida) quer para a cocaína - aliás, quanto a esta última droga será normalmente essa a via pela qual viaja da América do Sul, pois costuma ser transportada juntamente com produtos perecíveis, como frutas (Andrew Cunningham, responsável pela área dos mercados no OEDT, afirma numa entrevista recente à Euronews que "enquanto houver bananas nos supermercados europeus, haverá cocaína na Europa").

Diz o RASI que 82% da cocaína (cuja apreensão aumentou 4%) e 67% do haxixe vinham para Portugal por mar; já no caso da heroína, cujas apreensões baixaram 7,3%, 59% encaminhava-se por via terrestre. Na ecstasy (MDMA), que provém da Europa, a diminuição na quantidade apreendida excedeu um terço em relação a 2019. Em 92% dessas apreensões a via de acesso a Portugal terá sido a terrestre e postal. Resume este relatório: "A situação pandémica e as medidas implementadas introduziram perturbações muito significativas nos circuitos e nas dinâmicas do tráfico ilícito de estupefacientes, originando quebras significativas, exceto no tráfico por via marítima. Os elementos disponíveis apontam no sentido de que as organizações têm vindo a adaptar-se a esta nova realidade, utilizando novos modus operandi para fazer chegar o produto estupefaciente aos consumidores. Utilizam, entre outros, mercados online, plataformas digitais, redes sociais e serviços de entrega rápida."

Vias que de acordo com Andrew Cunningham, na citada entrevista, deverão "persistir mesmo depois de nos esquecermos da covid-19. Já estavam a acontecer antes da pandemia, mas funcionou como acelerador."

Mas aventa também, para o segmento específico dos toxicodependentes - as pessoas que estão "no fim da linha" do consumo de drogas - que as consequências económicas negativas da pandemia podem resultar "em mais crime relacionado com o consumo", ou "mais consumo de álcool ou de novas substâncias psicoativas ou a adoção de vias mais perigosas de uso como a injeção."

Uma análise em que o responsável do OEDT é acompanhado pela psicóloga Marta Pinto, da R3 (Riscos Reduzidos em Rede, uma rede de âmbito nacional constituída por utilizadores de drogas, trabalhadores do sexo, organizações e especialistas da área da redução de riscos e minimização de danos).

"As circunstâncias como a atual (em que o acesso às substâncias fica condicionado por várias razões, nomeadamente a da redução do poder de compra - algo que aconteceu por exemplo na crise económico-financeira anterior) tendem", diz esta investigadora, "a criar condições para o aumento dos riscos sociais e sanitários associados ao consumo. Parece existir uma tendência de aumento do consumo injetado de drogas em detrimento do consumo fumado, o que põe em causa as tremendas conquistas que têm sido feitas nos últimos anos no nosso país (em que a tendência era a oposta). Isto é preocupante porque esta via de administração envolve mais riscos, nomeadamente associados a infeções transmissíveis por essa via, como o VIH e a hepatite C."

Também Rui Coimbra, da CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados, associação criada em 2010), exprime preocupação: "Vi malta a partilhar materiais [de injeção, de aspiração ou de fumo] como nos anos 1990, porque os kits [de redução de riscos, que contêm seringas e outros materiais para administração de drogas] deixaram de ser distribuídos." Graceja: "Parece que há a ideia de que entre drogados a covid não se pega." Também assistiu a "pessoas a fazer experiências com substâncias na pandemia. Com a falta do haxixe e com a melhor qualidade da cocaína - dei conta de que estava muito mais pura - houve quem fosse por aí. E vi putos a fazer as primeiras chinesas [fumar heroína]."

Outra consequência negativa da pandemia apontada por este ativista que se assume como "policonsumidor" foi o facto de as comunidades terapêuticas terem "travado internamentos". Facto confirmado por Américo Nave, da Crescer na Maior, ONG que lida com a população toxicodependente "de rua". "As entradas nas comunidades foram muito dificultadas porque as equipas reduziram. Por exemplo no caso do álcool havia pessoas a pedir para irem para comunidades e os internamentos fecharam."

No caso do álcool, explica, cuja paragem súbita no consumo pode causar a morte - "Podem ter um colapso cardíaco se pararem de um dia para o outro, chegámos a ter de dar bebida às pessoas para reduzir riscos" - essa procura ter-se-á devido muito ao facto de que, com tudo fechado, havia muito maior dificuldade dos alcoólicos de encontrar a substância à venda e sobretudo de arranjar dinheiro para a poder comprar, algo que naturalmente também sucedeu com todo o tipo de toxicodependentes de "fim de linha". "Não havia a hipótese de pedir, de arrumar carros, de roubar. Nada", diz Américo Nave. "Ficaram muito assustados no primeiro confinamento, não percebiam o que se estava a passar. São pessoas que em geral não estão informadas e ficaram totalmente isoladas na rua, perguntavam: o que está a acontecer? Por que é que não vemos ninguém?"

Esse susto e a impossibilidade de arranjar dinheiro - mais do que a falta de drogas à venda, de que Américo Nave não teve notícia ("Ao contrário do que esperávamos não houve grande dificuldade de acesso, conseguiram sempre comprar, e nas zonas de tráfico continuei sempre a encontrá-lo visível") - terão levado muita gente, sobretudo entre os que foram para os centros de emergência criados para os sem-abrigo, a manifestar abertura para entrar em programas de substituição ou mesmo em comunidades terapêuticas. Uma tendência de resto reportada noutros países. Mas o responsável da Crescer na Maior está a ver "muitos a voltar à rua, e a chegarem mais", em consequência da crise económica. "E em ficando em situação de sem-abrigo os consumos são um refúgio."

Na verdade, os consumos, incluindo de álcool, terão sido um refúgio para muita gente neste contexto. Marta Pinto refere um estudo em que está envolvida no qual "se vê para já que há uma parte significativa da amostra que reporta início/intensificação do consumo de substâncias (lícitas e ilícitas) desde março de 2020 e que o relaciona especificamente com a pandemia."

Os motivos variam muito - tanto como as circunstâncias pessoais. Nas drogas, como em praticamente tudo, não há explicações tamanho único. Carlos, de 23 anos, estudante, faz a sua interpretação: "É preciso lembrar que as drogas são, mais do que tudo, um ótimo entretenimento. O facto de se ter que estar em casa e abdicar de momentos de lazer tem um potencial enorme para o aumento do consumo, mais ligado ao aborrecimento (no meu caso) do que propriamente à desmotivação ou depressão. Acredito que estes dois últimos fatores podem ser preponderantes no aumento noutras pessoas, mas para mim o confinamento foi mais aborrecido do que propriamente prejudicial à minha saúde financeira ou emocional. Estar confinado e a trabalhar a partir de casa, com tudo o que isso acarreta (possibilidade de gerir melhor os horários de trabalho e mais flexibilidade, não ter que sair de casa e correr o risco de estar sob o efeito numa situação complicada, etc), leva, parece-me, a uma inevitável vontade de consumir mais."

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