De mochila às costas e de sorriso no rosto. Rute Gomes, de 39 anos, e Nuno Moniz, de 30, caminham lado a lado num dos trilhos de Monsanto, Lisboa, antes de partir na sexta-feira para a expedição de quatro dias aos Picos da Europa. Fazem parte do grupo de 16 doentes com diabetes 1 que vai viajar até ao norte de Espanha. É lá que vão fazer a subida a Peña Ubiña, uma montanha com 2417 metros de altitude e uma das mais altas da Cordilheira Cantábrica.."Não é a doença que nos impede de atingirmos os nossos objetivos e conquistas", diz Rute Gomes ao DN, com a determinação de quem sabe bem do que fala. Vive há 28 anos com a diabetes tipo 1 e sempre teve no desporto um aliado. "É o meu melhor amigo, sem sombra de dúvida". Nuno Moniz acena com a cabeça. Há 15 anos foi diagnosticado com a doença..Para o ator e músico, a viagem aos Picos da Europa mostra a importância do exercício físico e quanto a diabetes "não é limitativa". "É só não limitarmo-nos", garante. E é por isso que destaca também a vertente pessoal desta expedição, promovida pela Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP). "O lado da superação"..A caminhar, os dois não escondem o entusiasmo de quem está prestes a partir para os Picos da Europa. "Estou com boas expectativas", solta Nuno Moniz que destaca o lado "bom" de ir com quem também lida com a doença diariamente. "Aprendemos com os pares, partilhamos experiências", sublinha..Treinos de preparação.Rute Gomes admite alguns receios. Se leva comida suficiente e como será o percurso são algumas das interrogações que partilha. "Nunca fiz montanhismo, mas estamos bem preparados", assegura. O grupo vai fazer-se acompanhar por uma equipa de saúde da APDP..Nos últimos tempos, os 16 doentes com diabetes tipo 1 têm realizado treinos de preparação, o último dos quais em Rio Maior, a 26 de maio. Foram cinco horas de caminhada, "com subidas e descidas muito íngremes", recorda Rute. O mais próximo do que vai ser a realidade a partir de sexta-feira. Todos puxavam uns pelos outros e conseguiram ultrapassar as dificuldades, relata. "Aprendemos a gerir a respiração, o esforço físico, a racionar a comida, a água. Todos íamos preparados com barras energéticas, com os nossos glucotabs, que são umas pastilhas de açúcar de rápida absorção", relata a técnica de ótica..Durante as caminhadas vão medindo os níveis de glicose e fazendo a gestão do exercício físico com a doença. "Só paramos quando estamos em hipoglicemia, quando os valores estão em baixo. Fora isso, temos seguido sempre caminho. Fazemos paragens técnicas para comer, ver como estão os níveis, se está tudo OK", resume..A ajuda do sensor que mede os níveis de glicose.E é aqui que ganha destaque um dos avanços da tecnologia: um sensor que tanto Rute como Nuno usam. Trata-se de um sistema de monitorização através de um sensor, uma aplicação subcutânea no braço..Com a ajuda de um dispositivo é possível medir os níveis de açúcar no sangue sem ter de recorrer à habitual picada no dedo. Desde janeiro de 2018 que o Estado começou a comparticipar em 85% a compra do aparelho. O sensor é mudado de 14 em 14 dias, explicam..Mas antes de saber que ia participar na expedição, Rute já fazia corridas de cinco quilómetros, antes de ir para o trabalho. Intensificou o treino e acrescentou-lhe as caminhadas com o grupo. "Quando pratico mais exercício físico a toma da minha insulina automaticamente reduz". É por isso que diz que o desporto é um aliado na sua gestão diária da doença..As diferenças entre a diabetes tipo 1 e a tipo 2.Quando se está a praticar exercício, os músculos, "os grandes consumidores da glicose", tornam-se mais "eficientes e vão queimar mais açúcar", explica o diretor clínico da APDP, João Raposo. "Vão utilizar mais a energia de uma maneira que o nosso metabolismo fica mais eficiente. Sendo mais ativos, temos menos tendência para termos excesso de peso e a nossa insulina, aquela que está em circulação, funciona melhor", acrescenta o médico endocrinologista..Já quando há peso a mais tudo fica mais parecido com o que acontece na diabetes tipo 2, provocada pelo estilo de vida, como o sedentarismo e a má alimentação. "Porque o organismo torna-se resistente à ação da insulina, que tem mais dificuldade em atuar e é preciso uma dose maior para ter o nível de açúcar controlado"..Na diabetes tipo 2, a mais predominante, o corpo torna-se resistente à ação da insulina "por causa do excesso de peso, obesidade", entre outros fatores, associados ao estilo de vida..Já a diabetes tipo 1, diagnosticada em crianças e jovens adultos, "nada tem a ver com causas alimentares nem de inatividade física". É uma doença crónica que "leva à destruição das células que produzem insulina no pâncreas", explica João Raposo..Mais de um milhão de portugueses são diabéticos.De acordo com o Observatório Nacional de Diabetes (OND), há mais de um milhão de portugueses diabéticos. No relatório "Diabetes: Factos e Números" de 2015, divulgado pelo OND, estima-se que 13% dos portugueses (1,3 milhões) têm diabetes. .Em 2015, a de tipo 1 afetava 3327 crianças e jovens até os 19 anos. É, portanto, uma "doença minoritária" tendo em conta todas as outras pessoas que sofrem de diabetes, considera o médico João Raposo que vai estar com o grupo de Nuno e Rute na expedição aos Picos da Europa..Integra a equipa de profissionais de saúde para acompanhar todo o processo, ajudar e garantir que "as coisas corram o melhor possível". Até porque entre os participantes há níveis diferentes de experiência com a doença. Há, por exemplo, quem tenha a diabetes há menos de um ano. "Isso significa que o conhecimento acerca do seu corpo e a maneira como respondem é diferente", esclarece..Ter atenção aos níveis de glicose é fundamental para quem quer praticar este tipo de atividade física intensa. "Não queremos que os níveis de açúcar no sangue desçam abaixo do normal porque aí a pessoa tem que mesmo suspender a atividade, ingerir açúcares, esperar que os níveis se recomponham e só depois continuar", alerta. Se os níveis subirem demasiado, "os músculos também não são capazes de funcionar e, portanto, a pessoa tem de novamente parar, fazer a insulina e esperar que os níveis desçam", explica o médico..É por isso que o desafio neste tipo de iniciativas está, no entender de João Raposo, em encontrar "o ponto de equilíbrio entre aquilo que a pessoa vai comer para que os níveis não desçam demais e a insulina que vai usar para que os níveis não subam demasiado". E nesse sentido ganha ainda mais importância os treinos de preparação que antecederam a expedição. Para que cada um conheça a "resposta do seu corpo ao exercício"..Cães treinados para detetar crises de hipoglicemia.No final, o objetivo é mostrar que "as pessoas com diabetes estão plenamente capazes, com os recursos que existem hoje, de fazer o mesmo tipo de atividades que outras conseguem fazer", salienta o diretor clínico da APDP..Voltamos a Monsanto e ouvimos as mesmas palavras. "Conseguimos fazer tudo perfeitamente normal, ainda para mais quando o exercício é um aliado", destaca Nuno Moniz, que não dispensa a companhia de Iris nas caminhadas que faz regularmente..E tal como ele também a cadela está em treino. O ator e músico é família de acolhimento de Irís, da Pata de Açúcar, uma associação que promove o "treino de cães com vista à deteção antecipada de crises de hipoglicemia [quando os valores estão muito baixos] em seres humanos portadores da doença de diabete". Nuno está desde o início do ano a treinar a cadela, um "medical dog"..Durante a caminhada, a cadela faz sorrir, ainda mais, a dupla. Dois apaixonados pelo desporto. Nuno, por exemplo, participou na EDP Meia Maratona de Lisboa, no passado mês de abril. Rute está de olhos postos na próxima que vai acontecer na capital..Fazia natação de competição quando aos 11 anos lhe disseram que tinha diabetes tipo 1. Uma doença que a iria acompanhar para a vida toda e que a obrigou a uma mudança de rotinas..Numa semana intensa de treinos, com muito cansaço pelo meio, emagreceu sete quilos, recorda. A mãe levou-a ao centro de saúde e foi aí que recebeu o diagnóstico. "Foi um choque"..Na altura, não tinha noção do que significava ter a diabetes. "Houve momentos difíceis, mas sempre levei a doença com espírito positivo e sempre fiz desporto, o que até hoje fez com que a doença tivesse sido bem controlada", reforça..Devido ao desconhecimento da diabetes chegou a sentir-se um bocadinho à parte, sobretudo nas festas de aniversário. "Não me deixavam comer rigorosamente nada", lembra. "As pessoas não tinham o mesmo conhecimento que têm hoje", justifica. Também na escola essa falta de informação se fazia notar, afirma. A diretora de turma chegou a fazer uma reunião com os colegas de Rute para explicar a doença. "A maior parte dos meus amigos pensava que era uma gripe, 'ah isso depois passa'". Mas, não. É uma doença para toda a vida. "Havia quem se afastava porque fazia um bocadinho de confusão". Na altura, usava-se ainda seringas que Rute levava para escola. Agora são usadas as injeções com canetas para a administração de insulina..Aprendeu a regular a insulina, a controlar e a contabilizar os hidratos de carbono que vai comer em cada refeição. Sempre foi ela que injetou a insulina. Nunca quis a ajuda da mãe e do pai. Assim preparou-se para as situações em que os pais não podiam estar com ela..E são várias as vezes que ao longo do dia tem de tomar insulina, cerca de seis. Isto acompanhado com as medições regulares da glicose e sempre a contabilizar os hidratos de carbono que vai ingerir. Como é que uma criança de 11 anos se adaptou a esta rotina. "É porque tinha de ser", ri-se. Elogia os profissionais de saúde que a acompanharam e conta que, na altura, teve a ajuda de um psicólogo. "Claro que temos de ter muita força, não é fácil, mas conseguimos superar", sublinha Rute..Nuno Moniz tinha 15 anos, quando estava se preparava para entrar no secundário, quando foi diagnosticado com a doença, que foi "descobrindo aos bocadinhos". Também aprendeu a dar injeções sozinho e a contar os hidratos de carbono presentes nos alimentos [um dos fatores que influencia o nível de glicemia] que vai comer. "Consegue-se com a prática, o treino. Às tantas já é a olho", ri-se. "Três a quatro colheres de arroz e já sabemos que equivale a uma porção, depois ajustamos", exemplifica Rute..Tal como a colega de expedição, Nuno sempre teve uma atividade física. Fez natação de competição e quando soube que era diabético praticava surf. "E, na altura, mantive". Agora opta mais pelas caminhadas. O exercício, diz, "além de todas as coisas boas" que faz à nossa saúde também ajuda a "estabilizar os valores da glicose". E aconselha os diabéticos como ele a não terem medo de praticarem exercício físico. "Às vezes parece um monstro maior do que é. É aquela coisa: 'ah e se [doença] se descontrolar?'. Mas as pessoas já fazem a gestão controlada no dia-a-dia. É só estar mais atento, ter cuidado para que o sintoma da hipoglicemia não se disfarce com os de cansaço do exercício", aconselha.