Exclusivo DN/NYT: Uma valsa para um jogo de futebol?
"O futebol é um jogo simples", disse o lendário treinador de futebol escocês Bill Shankly. O desporto, acrescentou ele, foi "complicado por pessoas que deveriam ser mais sensatas".
Provavelmente tinha razão: duas equipas, duas balizas e uma bola. Em torno de um quadro tão simples gira uma indústria global multibilionária, com os principais jogadores catapultados para a fama e a riqueza, e países inteiros que praticamente paralisam na altura dos jogos mais importantes.
Mas há 10 anos, o músico alemão Carsten-Stephan Graf von Bothmer olhou para o jogo e viu-o sob uma luz diferente: como um filme mudo que precisava de uma banda sonora.
"No futebol há cenas de sucesso, de tensão, de grande paixão; todas as emoções que vêm ao de cima com os filmes também aparecem com o futebol ", disse ele numa entrevista por telefone feita recentemente a partir de Berlim.
Durante o Campeonato do Mundo deste ano, von Bothmer voltou a trazer a sua marca particular de improviso do cinema mudo para uma plateia ao vivo, tocando órgão na Igreja dos Doze Apóstolos em Berlim para acompanhar partidas selecionadas. Ele tem feito acompanhamentos semelhantes para jogos em grandes torneios internacionais de futebol desde 2008.
Von Bothmer construiu uma reputação, tanto no seu país como no estrangeiro, com os seus concertos de cinema mudo, eventos em que ele toca um órgão de igreja, ou um dos dois órgãos de teatro que restam em Berlim, para acompanhar filmes clássicos.
Pelas suas contas, já acompanhou quase 1000 filmes, incluindo obras-primas alemãs como "Metropolis" e "Nosferatu", e comédias de Harold Lloyd, Buster Keaton e Laurel e Hardy. Num fim-de-semana de 2007 ele tocou, numa maratona de quase 30 horas, para acompanhar toda a obra do realizador alemão Ernst Lubitsch.
A ideia de fazer algo parecido com o futebol surgiu durante os preparativos do Campeonato da Europa de 2008. Enquanto bares, restaurantes e cervejarias se preparavam para exibições públicas e estridentes dos jogos, von Bothmer estava em conversações com uma igreja de Berlim sobre a montagem de um programa de concertos de órgão.
"Não tenho a certeza sobre quem o disse primeiro", afirmou, "mas surgiu a ideia de que os filmes e o futebol são muito semelhantes e devem ser acompanhados musicalmente".
Começaram a falar sobre a possibilidade de von Bothmer dar ao futebol o mesmo tratamento que dava aos filmes, assistir aos jogos com o público e, ao mesmo tempo, improvisar uma banda sonora. Ele disse que estava convencido de que estavam a fazer algo único, mas que também se tinha questionado se os adeptos ferrenhos de futebol dariam uma oportunidade a uma ideia tão estranha.
Não precisava de se ter preocupado. Quando chegou à igreja, "havia oito pessoas à porta, em pé, uma hora e meia antes do espectáculo. Quando começou, havia cerca de 500".
Desde então, as suas atuações nos Campeonatos da Europa e do Mundo atraíram uma vasta gama de espectadores, incluindo muitos que não são fãs de cinema mudo nem adeptos de futebol particularmente entusiastas.
O que eles vivenciam é Von Bothmer a tocar o tema de Darth Vader da "Guerra das Estrelas" quando os árbitros marcam faltas e exibem cartões amarelos e vermelhos. Ouvem a música de um western spaghetti quando um jogador se esquiva e finta, e a interpretação de von Bothmer do hino nacional de uma seleção em momentos particularmente triunfantes.
O comentário musical em execução dá aos jogos um ar de grande drama, de comédia e dos vários géneros entre os dois.
Embora von Bothmer geralmente veja um filme várias vezes antes de o acompanhar em público, tomando notas sobre reviravoltas cruciais e momentos melodramáticos, segundo ele, ainda improvisa parcialmente nesses espectáculos. Com o futebol, é claro, não tem outro remédio a não ser improvisar.
"Quando se é um compositor de cinema normal, reage-se apenas ao filme", disse ele. "Aqui, o público reage ao jogo, mas também à minha música. E eu reajo ao jogo, mas também ao público".
Esse ciclo de reações ficou evidente durante o jogo Islândia-Croácia, que von Bothmer acompanhou na Igreja dos Doze Apóstolos, a quarta das oito apresentações que aí tinha agendadas. A certo ponto, ele tocou alguns compassos de uma valsa de Strauss enquanto os jogadores voavam pelo campo. Noutro momento, o órgão juntou-se à plateia na igreja, ecoando os espectadores no ecrã enquanto executavam os gestos e gritos característicos do canto do "Trovão" islandês".
Quando ficou evidente que a equipa da Islândia estava fora, von Bothmer tirou uma harmónica para tocar uma melodia melancólica, o que provocou risos e uma ovação de pé quando a plateia saiu para a noite ainda clara de Berlim.
Na tarde seguinte, von Bothmer teve a oportunidade de avaliar a sua capacidade para animar os adeptos de uma equipa derrotada. Ele foi contratado para tocar no jogo decisivo Alemanha-Coreia do Sul, numa exibição privada para os presos de uma cadeia em Berlim. Ele complementou o órgão eletrónico da capela da prisão com dois dos seus próprios sintetizadores Korg. A multidão de prisioneiros era mais ruidosa "quando a câmara percorria as bancadas e mostrava mulheres bonitas na assistência", contou ele.
Foi um espectáculo difícil. Causando um choque enorme, a Alemanha perdeu com a Coreia do Sul e saiu da competição na fase de grupos. Perante a nada invejável tarefa de narrar uma deceção nacional, von Bothmer disse que também se inspirou num jogo de um Campeonato do Mundo anterior.
"Em 2010, os alemães jogaram tão incrivelmente mal que eu estava um pouco desesperado", disse ele. "Quando não há absolutamente nenhum golo, o que é que se faz? Alguém me gritou: 'Vá mais rápido!', como se os alemães corressem mais depressa se eu tocasse mais rápido!"
Foi uma confirmação de que a ilusão estava completa: na mente do público, o futebol e o acompanhamento do órgão tornaram-se um só. "Eu não poderia ter tido um elogio melhor", disse ele.