Excluir para incluir

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Se você se sente frustrado com a realidade, com a crua-dura-nua realidade, tem bom remédio: mude o que se pode dizer sobre a realidade e altere também o que já se disse sobre a realidade. Meta os livros na fogueira, queime filmes, documentários, jornais. Destrua a memória e crie polícias do pensamento e exércitos da linguagem. Assim, vai ficar tudo bem. A violência, a opressão, a injustiça, o assédio, o desejo ou, no limite, simplesmente tudo o que não é a sua própria opinião, incomoda-o ? Ofende-o? Sente-se indignado a toda hora mas não consegue mudar os factos? É isso mesmo. Faça piras de discos e imole pelo fogo purificador peças de teatro e obras de arte. Cancele. Apague. Bloqueie. Proíba. Suspenda. Exclua o mais possível em nome da inclusão. Não gosta que pessoas como a autora de Harry Potter constate dados biológicos como o de que só existirem dois sexos -- o masculino e o feminino ? Elimine-a da sua própria obra como fizeram em Seattle. Acha que as imagens de Schiele e dos seus corpos torcidos não são agradáveis à vista? Bana-as como já aconteceu na Alemanha. Acha que a anatomia perfeita de David de Miguel Ângelo e a sua genitália o perturba? Lápis azul em cima, como se verificou nos EUA. Acredita que no Sr. Fox de Roald Dahl "as máquinas eram pretas" (descrição de tractores) é racista? Diga antes tractores de mistura de todas as cores, resultado da falta parcial ou completa da luz. Ok? Ian Fleming e o 007 também chateia? É mutilar. Já que não consegue alterar a natureza predatória da humanidade, 90% da riqueza do mundo concentrada em 1% da humanidade, ou as centenas de espécies de fauna e flora em vias de extinção, mude o que se diz sobre isso ou, simplesmente , silencie-o ou chateie-se com os Queen falarem de "raparigas de rabos gordos". Aliás nem rabos, nem raparigas nem gordos. Fale de glúteos com maior volume de crianças com um Orifício extra, ok? Fica mais calmo assim? Se Kipling, Jane Austen, Agatha Christie e Enid Blyton falam de temas controversos, é destruí-los. Óptimo. Meta moral na arte (esqueça lá isso dela ser intrinsecamente amoral), negue a capacidade simbólica e interpretativa no Homo sapiens (já agora todo o córtex frontal), baralhe descrição com ideologia, biografia com obra (elimine todas cuja autoria não corresponda a um anjo impoluto), confunda autor com personagens (como se o que é dito/ mostrado revelasse as convicções do criador), e fique-se pelo literalismo e pelo pensamento mágico - crendo que será retalhando palavras e despedaçando ideias que resgatará o paraíso. Fora isso, defenda a liberdade de expressão. Desde que essa liberdade não fale de símbolos nacionais, feios, cegos, coxos, mulheres lindas, etnias, grandes feitos da Rússia, inutilidade das máscaras, da treta do combate às alterações climáticas, fora isso tudo, defenda a liberdade de expressão. Encha a boca com a palavra tolerância mas força nas guilhotinas, na revisão da história, no fundamentalismo da igualdade, na ditadura esclarecida. Já sabe: se disser sempre "todes" em vez de todos, pessoa economicamente desfavorecida em vez de pobre ou humano que produz sémen em vez de homem, o mundo será um lugar melhor, sem mulheres assassinadas pelos companheiros, novas paletes diárias de ultra-ricos, crianças escravizadas e exploradas. Vá. Sinta-se limpo. E poderoso.


Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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