António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, foi notícia nesta semana por se emocionar ao dizer que não havia mortes por covid-19, no país, nas últimas 24 horas daquela segunda-feira. Ficou abalado, achou que poderia ser entendido como sinal de fraqueza. Os amigos deram-lhe força, até porque "a emoção é um reflexo do que ele é". Ao DN, diz que "é uma pessoa normal", "igual a dez milhões de portugueses" e que se sente feliz "a vestir as duas camisolas", de médico e de político..3 de agosto de 2020. 14.00. No terceiro andar do edifício da Avenida João Crisóstomo, em Lisboa, António Lacerda Sales, o médico, cirurgião ortopedista, que desde outubro ocupa o cargo de secretário de Estado da Saúde, entra na sala habitual para mais uma conferência de balanço da covid-19..De fato claro, gravata azul e de pasta cheia de papéis na mão, começa, como sempre, por saudar quem ali está, ou quem assiste por zoom e o vai interrogar, ou por televisão ou por rádio. A seu lado, tinha Rui Portugal, o médico de saúde pública que a ministra Marta Temido nomeou recentemente coordenador do Gabinete de Intervenção para a Supressão da covid-19 na região de Lisboa e Vale do Tejo, a mais atingida desde maio..O dia era de boas notícias relativamente à doença. A primeira ao fim de 141 dias - mais precisamente desde o dia 16 de março, altura em que foi anunciado o primeiro óbito em Portugal devido ao novo coronavírus - e quando já se contam 1738 óbitos. Nesse dia, o governante António Lacerda Sales tinha para anunciar "zero mortes" e 103 novos casos, também o número mais baixo dos últimos meses. Não contava era ser traído pela própria voz, que se embargou, emocionou, à frente das câmaras e de todos os portugueses que assistiam em direto à conferência. Parou o discurso, voltou a reiniciá-lo e voltou a parar. Depois, continuou, sem deixar transparecer mais qualquer outra manifestação de sentimentos..O registo voltou a ser monocórdico - como lhe tem sido habitual durante todos estes meses. Aliás, ele próprio já assumiu ser assim por ter sido preparado em medicina para gerir a pressão, mas sobre o que tinha acontecido em frente às câmaras não queria sequer falar nos corredores da João Crisóstomo..Ao DN, por escrito, disse que o poder anunciar a ausência de óbitos fez que sentisse "satisfação, emoção, sabendo que podia ser uma circunstância transitória, mas sem deixar de acreditar que pode ser um bom prenúncio de mudança - um profissional de saúde privilegia a vida. Não há para um profissional de saúde melhor notícia do que anunciar zero mortes"..O amigo de longa data, António Sá, diretor do serviço de ortopedia do Hospital de Santo André, em Leiria, onde o governante exerceu a sua prática clínica durante mais de 30 anos, até entrar como deputado no Parlamento, explica: "Somos ortopedistas. A manifestação destas emoções não é habitual. Os nossos doentes não costumam morrer, têm outro tipo de lesões, a maior parte até é saudável", mas "ele é uma pessoa sensível, que se preocupa com os outros, e o estar todos os dias a relatar desgraças não é agradável. Para ele, não haver mortes naquele dia deve ter sido uma satisfação, uma espécie de dever cumprido dos profissionais e da população, apesar de todas as dificuldades.".António Lacerda Sales não entra na sala de conferências sem estar preparado. "Preparo as conferências de imprensa, como preparo todos os momentos do meu dia profissional, seja uma reunião com a senhora ministra ou com os representantes das ordens profissionais, ou outra reunião qualquer. Às vezes, a minha equipa queixa-se que sou muito metódico. Talvez seja defeito profissional, mas não conheço nenhum cirurgião que não se prepare muito bem", argumenta ao DN..Quem o conhece diz que não esquecerá aquela segunda-feira, 3 de agosto, não porque se emocionou ou porque foi traído pela emoção, porque cada conferência de imprensa tem como objetivo transmitir informação, a cada momento, a realidade objetiva, com rigor, e transparência não deixando sempre que possível de transmitir uma palavra de confiança". Naquele dia, a sua preocupação não teve que ver "com o ser traído pelas emoções, mas sim com o não deixar mais dúvidas nas pessoas do que aquelas que não consigo controlar"..Se tivesse de se definir, diria que é "uma pessoa normal. Um de dez milhões de portugueses", que nunca se tinha imaginado "nestas funções. Foram as circunstâncias e o decurso da vida que aqui me trouxeram", afirma ao DN, mas sente-se bem nas funções que ocupa. Aliás, à questão se se sente mais médico do que político, responde: "Entendo que sou médico de formação e político de circunstância. Sinto-me feliz a vestir estas duas camisolas.".E sobre o que distingue estas duas facetas não tem dúvidas: "Garantidamente que o local de trabalho oferece uma distinção à partida entre ambas as facetas! Mas o que não deixa de ser comum é o idêntico resultado que se procura no dia-a-dia: a solução de problemas que melhorem a vida das pessoas.".O amigo António Sá, que o conheceu quando ambos entraram no Hospital de Santo André, em Leiria, para fazer a especialidade de ortopedia, garante que a entrada na política "não foi planeada ou preparada". Aconteceu, mas foi uma mudança que o médico, "amigo" e "companheiro", acredita que só aceitou "por sentir que poderia marcar a diferença e fazer algo pelo país, pelos profissionais e pelas pessoas". Por isso, não se surpreende com o trabalho que António Sales fez como deputado e agora como secretário de Estado. "Fá-lo porque tem uma missão a cumprir e fá-lo com muito empenho e dedicação. Quem o conhece sabe que ele é assim.".António Sá diz ainda que o governante "é uma pessoa presente", "muito bem preparada e com uma capacidade de trabalho grande", que "não deixou de ser médico" ao ocupar o cargo de governante. Pelo contrário, "ele tem a noção do que são as necessidades dos profissionais e do lado social"..Ele confirma que foi "a perspetiva de poder ser útil à comunidade e à sociedade", contando: "Tudo começou na integração da lista do PS para a Assembleia da Freguesia de Leiria. Apesar de ter estranhado o convite, senti o apelo de poder ser útil à comunidade, numa perspetiva de proximidade que é o condão do trabalho autárquico. Aí fui presidente da Assembleia de Freguesia de Leiria, presidente da Concelhia do PS Leiria, presidente da federação e deputado à Assembleia da República. Foi todo um percurso desde a base do poder local até ao Parlamento, a casa da democracia. Foi também uma aprendizagem interessante sobre o processo legislativo, por exemplo. E isso foi muito bom."."A emoção reflete o que ele é".Maria Antónia de Almeida Santos, deputada socialista, começa por contar ao DN que é uma amiga recente, pois, "apesar de sermos do mesmo partido, só nos conhecemos quando chegou ao Parlamento há cinco anos", mas foi das primeiras a ligar-lhe quando o viu emocionar-se em frente às televisões ao anunciar "zero mortes"..Para a deputada, "a emoção reflete o que ele é, uma pessoa que gosta muito de ajudar o próximo. Há meses que anda preocupado com a situação", sublinha..Maria Antónia ligou ao amigo e disse-lhe o que pensava: "Ele ficou um pouco abalado, a achar que era sinal de fraqueza, mas não é. Esteve muito bem. O ter-se emoções não é fraqueza nenhuma. Farta de tecnocratas, que só olham para os números e não para o lado humano estou eu", "as pessoas não têm de ser máquinas que só debitam números todos os dias", remata..António Sales ainda argumentou que Maria Antónia o elogiava para lhe dar força e por ser sua amiga, ao que ela lhe respondeu, que "não era assim. Assisti à situação com várias pessoas ao meu lado que acharam o mesmo"..A socialista que integra a lista de deputados do PS há muito tece ainda outros elogios ao secretário de Estado da Saúde, sublinhando que foi um dos que chegaram e que rapidamente "se adaptou, e bem, ao mundo do Parlamento, o que nem sempre é fácil. Quase que nem precisou de ajuda". Como parlamentar, Maria Antónia de Almeida Santos define-o como "uma pessoa muito bem preparada, competente" e "uma excelente pessoa"..Das caldas para o Bombarral, de Leiria para Lisboa.António Lacerda Sales nasceu a 3 de julho de 1963, filho de uma professora primária e de liceu e de um diretor das finanças, cresceu no Bombarral, onde foi escuteiro e jogador de futebol do clube da terra até à adolescência, e conheceu o gosto pela medicina quando, aos 9 anos, descobriu o estetoscópio de um médico amigo, confessou o próprio há uns anos numa entrevista..Não mais abandonou este sonho e ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra para o concretizar. Depois da licenciatura, foi para Leiria, onde fez a sua carreira clínica, "é excelente médico", começa por dizer o escritor e ex-deputado Manuel Alegre. "Um dia, já não era eu deputado, tive um grande problema num joelho, perguntei a um amigo quem poderia tratar-me, e ele recomendou-me o António Sales. Ele deu-me uma injeção e nunca mais tive problemas", afirma a rir..O escritor enaltece a sua "sensibilidade e correção", o que "é cada vez mais raro", mas também a afetuosidade. "É uma pessoa afetuosa, que sabe ouvir". "Já não sou deputado, mas continuo a preocupar-me com as coisas e, às vezes, é mais fácil falar com o primeiro-ministro ou com o Presidente da República, que também são da velha guarda, do que com um secretário de Estado, mas a ele envio-lhe alertas, chamo a sua atenção para algumas situações, e ele responde-me sempre com mensagens de voz. E voz é sempre voz. Tenho por ele uma grande estima.".António Sales conta que o que o levou para a medicina foi o facto de ser "uma profissão em que conseguimos ser úteis aos outros. Creio que foi a minha maior motivação"..Descobriu o fascínio pela medicina aos 9 anos.Aos 9 anos descobriu "o fascínio pelo estetoscópio". Depois, pediu à mãe que lhe comprasse um livro, O Cancro, e foi aí que a decisão nasceu e que foi fazendo o seu caminho. "Também me lembro de dizer que ia tratar dos ossinhos da minha avó", que era uma figura maternal muito próxima, e de quem acompanhei o processo de envelhecimento." E, a especialidade que escolheu foi precisamente a ortopedia..Há mais de quatro meses que António Lacerda Sales, divorciado e com uma filha, divide os balanços sobre a covid-19 com a ministra da Saúde Marta Temido e com a secretária de Estado adjunta e da Saúde Jamila Madeira. Tal como com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, ou outros representantes das autoridades de saúde..Quando fala, fala no plural, em equipa, e não no singular. Quem o conhece também diz que ele assim. Já o fazia na medicina, a escrever livros - já tem dois publicados e com autoria conjunta com Nuno Cordeiro Envelhecer Saudável e Ativo e Guia Prático do Desportista em Situação de Lesão, e também no trabalho parlamentar, quer seja na bancada quer na seja Comissão Parlamentar da Saúde..A colega médica, ex-deputada do CDS, Isabel Galriça Neto não se escusa a falar do atual secretário de Estado da Saúde: "Tenho muito boas recordações do convívio com ele." " Em alguns debates assumiu posições inflamadas, mas é uma pessoa muito educada, correta e cordata.".A médica diz mesmo que era das pessoas que "não pareciam ter convicções rígidas sobre o Serviço Nacional de Saúde, percebendo a necessidade de se alargar o sistema de saúde, embora tal, depois, se tenha revelado um pouco distante da Lei de Bases da Saúde do governo", concluindo que "foi com muito gosto que trabalhei com ele na Comissão de Saúde"..Homem decente, diz João Soares.Dele, os amigos dizem ser "uma excelente pessoa", "genuína", "um médico humanista e competente", "do melhor que há", como sublinha o deputado socialista João Soares, que o conheceu quando regressou ao Parlamento, em 2016, e ficou sentado ao seu lado. Hoje, diz, "tenho a honra de ser amigo dele. É um homem decente e olhe que muito poucas vezes utilizo esta classificação", referiu ao DN..Assinalando que é uma pessoa "sempre disponível para ajudar os outros", que "está na política para cumprir uma missão", o que "hoje em dia já não acontece muito". Há quatro dias, depois da emoção do governante ao anunciar as zero mortes, João Soares escreveu de imediato na sua página de Facebook que a atitude do amigo era "mais uma prova tocante da sua grande qualidade humana"..Nesse dia, Portugal, que contabilizava desde o início da pandemia 51 569 casos positivos e 1738 mortes, registava apenas 103 novos casos e nenhuma morte, no dia seguinte já não foi assim. Na conferência de imprensa António Sales dizia ter de se olhar para estes números "com humildade e cautela, porque de um momento para o outro a situação pode mudar", mas aquele momento não deixava de ser "um momento de grande satisfação", já que os "últimos tempos têm sido muito difíceis". Aliás, em junho, numa entrevista, assumia que "o mais difícil é tirar a morte e os que já morreram do pensamento"..Frase que "expressa também a sua forma de estar na vida", dizem-nos. Ou melhor, a forma que um médico tem de fazer política. Por agora, o desafio para o governante e para a sociedade portuguesa "é a imprevisibilidade desta pandemia que exige que estejamos sempre a antecipar. Por exemplo, agora estamos já na preparação da próxima época - outono/inverno. Já algumas das medidas têm sido afloradas e estamos a trabalhar profundamente nelas"..No dia 3 fez também um apelo aos portugueses, para que não baixem a guarda nos cuidados a ter para evitar a propagação da doença, já que o mais difícil de gerir é mesmo "fazer-se o caminho exigente, que Portugal tem feito, com resultados positivos no combate à covid-19, que se devem a várias fatores. E enumera-os: "1 - À consciência individual e coletiva do povo português (mais solidariedade e menos coletivismo); 2 - ao trabalho, ao empenho e ao esforço dos profissionais de saúde; 3 - ao conjunto de medidas especificas certas, tomadas no momento certo; 4 - à articulação e à cooperação entre setores do Estado e sociedade civil.".Por isso, termina, "sentar-me na conferência de imprensa significa dar a voz por todos estes resultados com rigor e transparência, mas também às dificuldades que fazem parte deste caminho em constante mutação. Claro está que anunciar óbitos é o pior momento para qualquer responsável político. E aqui também há um paralelismo com a minha vida enquanto médico. O mais difícil é transmitir as dificuldades aos doentes, que uma recuperação poderá ser mais demorada, por exemplo. Tento aplicar o mesmo princípio que aplicava no hospital, com o mesmo sentido de responsabilidade perante o outro, esteja a olhá-lo nos olhos ou a chegar através de uma câmara de televisão".