Ex-ministro Rui Pereira inspirou acusação de terrorismo na invasão da Academia Sporting

O criminalista Magalhães e Silva contraria a tese do MP segundo a qual a invasão da academia foi um crime de terrorismo e aponta o ex-ministro Rui Pereira como "pai" dessa imputação.
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Causou alguma incredulidade, senão mesmo estupefação, nos meios judiciais, académicos e entre especialistas que investigam e estudam o terrorismo, quando este crime foi apontado aos acusados pela invasão da Academia Sporting, em maio de 2018 - logo na noite da detenção, garantindo que ficavam em prisão preventiva, quando na realidade estavam prestes a ser libertados pela GNR.

O que não se sabia era de onde tinha partido a ideia - contrariada por vários especialistas. Ora, de acordo com o criminalista e fundador do PS, Magalhães e Silva, membro do Conselho Superior do Ministério Público, a tese tem um autor: Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna de José Sócrates.

Magalhães e Silva representa um dos arguidos do processo e alicerça a sua teoria no requerimento de abertura de instrução, a que o DN teve acesso. Elenca algumas "coincidências" que arrastam o ex-ministro (que também foi o responsável do governo pela aprovação da lei em vigor que tipifica o crime de terrorismo) para o caso de Alcochete.

"Quando se fizer a pequena história deste 15 de maio, serão lembradas duas coisas: que a GNR, na noite desse dia, se preparava para libertar todos os detidos, por se tratar de crimes que não admitiam prisão preventiva; e que Rui Pereira, antes mesmo de o Ministério Público [MP] tomar posição, defendia, na inenarrável CMTV, que a expedição de Alcochete constituiria crime de terrorismo."

O jurista assinala que "nada surpreende" que tal tenha sucedido e atira a segunda "coincidência": um texto de Rui Pereira, publicado em 2004 na revista do MP, no qual escreveu "um agrupamento de duas pessoas que se proponham esbofetear agentes de polícia para os intimidar constitui uma organização terrorista".

O advogado sustenta que "é aqui que, textualmente, vai beber o despacho de acusação (conhecido em novembro passado), incluindo a delirante referência ao "(...) agrupamento de adeptos de uma associação desportiva que se proponham esbofetear atletas para os intimidar", em servil paráfrase da associação de duas pessoas para esbofetear polícias da versão Rui Pereira". Assinala ainda que a mesma "doutrina" que defendeu na televisão foi depois reiterada a 17 de novembro, num artigo intitulado "Crimes de Alcochete".

"Gargalhada" na Europol

Para acicatar ainda mais a controvérsia, Magalhães e Silva cita a penalista Fernanda Palma, casada com Rui Pereira, segundo a qual a agravação de um ilícito com o crime de terrorismo "só se justifica quando estiverem em causa o Estado ou estruturas fundamentais da sociedade".

Para a presidente do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais os atos terroristas pressupõem "uma ameaça às condições vitais da organização da sociedade" e que "este modo de ser objetivo impõe uma previsibilidade e organização na atividade dos agentes, a produção de um efeito intenso de desestabilização exterior, embora porventura apenas pela coação, o qual torna os atos terroristas uma ameaça às condições vitais da organização da sociedade".

Confrontado pelo DN, o assumido adepto benfiquista e comentador televisivo nega ter sido a fonte de inspiração da procuradora Cândida Vilar neste processo. "Não tive nada que ver com isso. Foi um procurador da margem sul quem primeiro classificou o crime no dia das detenções", afiança Rui Pereira, refutando igualmente a existência de um alegado parecer informal de sua autoria que fontes que acompanharam o processo garantem ter sido entregue à magistrada do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa. "Não fiz parecer nenhum", assevera, escusando-se a dar mais explicações sobre as "coincidências" detetadas por Magalhães e Silva.

Na verdade a teoria de Rui Pereira, "bebida" pelo MP, não encontra apoio em nenhum dos mais conhecidos especialistas na matéria. "Do ponto de vista estritamente jurídico até posso concordar, mas do ponto de vista da conceção de terrorismo aceite por todas as nações não há neste caso nenhum pressuposto reunido - o principal dos quais não haver reivindicação política ou ideológica", sustenta António Nunes, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT).

Nunes, doutorado em Terrorismo pela Universidade Nova, resume a invasão da academia a um "ato de vandalismo e agressões realizadas por um grupo de pessoas que se juntaram em associação criminosa - ilícitos do foro comum". O que "é muito estranho" para o dirigente do OSCOT é que "tendo o MP diagnosticado este crime não tenha pedido apoio à única polícia com altíssima especialização nesta matéria e que tem competência exclusiva para investigar este crime: a Polícia Judiciária".

"Terrorismo há zero", concorda José Manuel Anes, perito em segurança e criminalidade. "Em lugar nenhum do mundo este caso seria considerado terrorismo. Será uma gargalhada na Europol se ficar registado como tal nas estatísticas internacionais", salienta.

José Manuel Anes desconhece "outro país do mundo" onde alguma vez se tenham "confundido hooligans com terroristas" e avisa: "Não banalizemos o terrorismo!", apela.

O que o MP não demonstra

O analista de risco político Diogo Noivo também contraria Rui Pereira, declarando ter "sérias dúvidas que o ocorrido em Alcochete seja terrorismo". Tem quatro argumentos, que, no seu entender, estão por demonstrar nos acontecimentos de Alcochete:

1 - O terrorismo é, por definição, político. A violência, ou a ameaça do seu uso, destina-se a inocular o medo para, dessa forma, condicionar comportamentos sociais e políticos. Estará por demonstrar que a violência em Alcochete esteve ao serviço de um projeto de poder.

2 - Mais importante para o caso em apreço, os alvos diretos do terrorismo nunca são os seus reais destinatários. As vítimas são um símbolo, uma representação daquilo que a organização terrorista entende ser o inimigo (i.e. um agente da polícia enquanto representante da autoridade do Estado, ou um cidadão europeu enquanto símbolo de uma sociedade alegadamente hedonista e "infiel"). Isto dificilmente se verificou em Alcochete, uma vez que os reais destinatários terão sido os jogadores.

3 - Uma das características que distinguem o terrorismo de outras formas de criminalidade organizada é o facto de este precisar de publicidade. Uma organização dedicada ao tráfico de armas não deseja atenção sobre a sua atividade, mas, pelo contrário, o terrorismo precisa de ampla divulgação da sua ação - sob pena de não disseminar o medo, que é o principal objetivo imediato de qualquer terrorismo. Está por demonstrar que os indivíduos envolvidos nas agressões em Alcochete desejassem a ampla divulgação do crime que cometeram.

4 - Por fim, o objetivo último das organizações terroristas não estatais é o Estado e as suas instituições, bem como a sociedade - ou pelo menos uma parte dela. Daí o terrorismo ser tão grave e insidioso. Também este critério dificilmente se verifica no caso de Alcochete.

O MP acusou 44 pessoas, entre as quais o ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e o líder da Juve Leo, Mustafá, de serem coautores de crimes de ameaça agravada, ofensa à integridade física qualificada e de sequestro, ilícitos que configuram, na tese do MP, terrorismo.

Na legislação em vigor uma associação terrorista é considerada "todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, atuando concertadamente, visem prejudicar a integridade e a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado, forçar a autoridade pública a praticar um ato (...) ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral".

O Tribunal de Relação indeferiu os recursos de advogados de alguns arguidos que pediam a alteração das medidas de coação - as prisões preventivas só foram justificadas pela imputação de terrorismo -, tendo os desembargadores apoiado o MP.

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