EUA retiram-se da principal base afegã, símbolo da "guerra sem fim"
Durante anos, aviões de caça, drones e aviões de carga descolaram das pistas da base aérea de Bagram dia e noite, dando cumprimento aos planos das Operações Especiais dos Estados Unidos, ali baseadas, para perseguirem a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. Nas últimas semanas, a base, situada cerca de 60 quilómetros a norte de Cabul, foi utilizada como plataforma para os militares deixarem o Afeganistão. Centenas de voos de aviões C-17 retiraram equipamento e armas dos EUA.
As últimas tropas norte-americanas e dos aliados saíram na sexta-feira, sem qualquer cerimónia. O porta-voz do Exército dos EUA no Afeganistão, Sonny Leggett, disse que a transferência de Bagram para o governo afegão "foi um processo extenso que se estendeu por várias semanas", tendo começado logo após o presidente dos Estados Unidos ter anunciado em meados de abril a retirada militar, a concretizar-se, o mais tardar, até 11 de setembro.
Em conferência de imprensa na Casa Branca, Joe Biden negou que a saída da principal base no Afeganistão significasse que a saída total ocorresse nos próximos dias. "Não. Estamos exatamente na trajetória prevista." Quando insistiram no tema, Biden saiu do guião e desabafou: "Quero falar de coisas felizes, meu". Mas acabou por responder à pergunta, que era se os Estados Unidos terão a capacidade de ajudar a proteger Cabul se esta estiver ameaçada. "Reparem, estamos há 20 anos no Afeganistão. Vinte anos."
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Deixou uma nota de otimismo ao dizer que acredita no governo afegão para se sustentar sem as forças estrangeiras. "Temos trabalhado numa capacitação de valor acrescentado, mas os afegãos vão ter de ser capazes de o fazer eles próprios com a força aérea que têm, que estamos a ajudá-los a manter", disse. Por fim, disse que queria concentrar-se nas celebrações do 4 de julho, o dia da independência dos EUA. Encerrou o capítulo com um lapsus linguae, ao declarar que na próxima semana estará disponível para responder a "perguntas negativas", ao que de pronto corrigiu por "legítimas".
As perguntas legítimas, negativas ou não, relacionam-se, claro está, com o avanço dos talibãs, que desde o acordo alcançado com a administração Trump têm poupado as forças estrangeiras, e nos últimos tempos atacado as tropas governamentais enquanto tomam distritos na parte norte do Afeganistão. No mês passado, quando os talibãs lançaram uma ofensiva em que cercaram várias capitais provinciais, os militares consideraram atrasar a partida de Bagram, mas a administração decidiu manter o calendário. Joe Biden é desde os tempos da vice-presidência um crítico da permanência dos EUA naquele país asiático, no que chama de "guerra sem fim".
Na semana passada, quando recebeu o presidente afegão Ashraf Ghani, Biden disse, com ar grave: "Quando penso que tenho um trabalho duro, eu penso sr. presidente?", enquanto apontava para o chefe de Estado que se deslocou a Washington com o objetivo de continuar a receber assistência. Os serviços secretos e os comandantes militares norte-americanos advertem que o governo afegão não poderá fazer frente aos talibãs sem o apoio militar externo e não escondem a perspetiva de uma guerra civil assim que as tropas americanas se forem embora. "A segurança não está em boa situação", reconheceu o chefe do Estado-Maior Conjunto Mark Milley, como que a dar razão ao presidente e aos críticos da intervenção militar transformada em ocupação.
Em 2015, uma investigação do gabinete do inspetor-geral para a reconstrução do Afeganistão entrevistou centenas de intervenientes na guerra. Em 2019, o Washington Post venceu uma batalha legal para publicar os documentos, os quais demonstram os erros de estratégia, o dinheiro atirado à rua e a forma como oficialmente o discurso não correspondeu à verdade.
"Estávamos sem um entendimento elementar do Afeganistão. Não sabíamos o que estávamos a fazer", admitiu Douglas Lute, um general do Exército que foi conselheiro da Casa Branca sobre o Afeganistão e o Iraque durante as administrações de George W. Bush e Barack Obama, aos entrevistadores do governo.
A base de Bagram foi construída pelos Estados Unidos nos anos 50 para defender o país do perigo vermelho, mas acabou por ser tomada pela União Soviética em 1979, para anos depois cair nas mãos dos mujaidines (apoiados pelos EUA), talibãs, que mais tarde dividiram o controlo das pistas com os seus inimigos, a Aliança do Norte, para, por fim, ser ocupada por quem a construiu.
Centenas de milhares de militares e funcionários de dezenas de países passaram desde então pela base, que chegou a ter piscinas, cinemas, spas e restaurantes de fast food. A instalação militar, que recebeu as visitas de Bush, Obama e Trump, fica também associada ao mais controverso dos anos da chamada "guerra ao terror" de W. Bush. Tal como em Guantánamo ou em Abu Ghraib, Bagram teve desde janeiro de 2002 um centro de detenção em que se cometeram abusos e torturas.
Criado como "centro de recolha temporário", tornou-se muito mais do que isso, com as tropas a prenderem e torturarem durante meses camponeses alvos de delação por fações tribais concorrentes, explicava em 2005 Ahmad Fahim Hakim, da comissão afegã dos direitos humanos à Mother Jones. "Os norte-americanos recebem um relatório de que uma aldeia pertence à Al Qaeda. Quando vamos verificar, não encontramos nada."