ESTREIAS: Jordan Peele supera os clichés do cinema de terror
Cinema de terror? É, hoje em dia, um espaço em que se cruza a experimentação mais interessante com a rotina mais banal. E podemos ter a certeza que o americano Jordan Peele se distingue por uma aversão a clichés que, no limite, o leva a desafiar os nossos pressupostos de espectadores.
Porque é que o novo filme de Jordan Peele se chama Nós? A pergunta tem tanto de rudimentar como de sugestivo. E é, obviamente, motivada. Não precisamos de a recobrir com qualquer mistério mais ou menos esotérico.
Está tudo nas linhas gerais do argumento, habilmente sugeridas pela bem orquestrada campanha (com destaque para o trailer) que, nos últimos meses, preparou o lançamento do filme. Assim, há um casal, os Winstons (Lupita Nyong"o e Winston Duke), e os seus dois filhos, um rapaz (Evan Alex) e uma rapariga (Shahadi Wright Joseph) - partem para um período de férias na sua casa de praia. Tudo parece correr de forma ligeira e descontraída, até que, à noite, no jardim, lhes surge uma outra família, também de quatro elementos, contemplando a casa em absoluta imobilidade...
Digamos, para simplificar, que os visitantes estão longe de ser pacíficos. Com um detalhe que não tem nada de secundário: são "duplos" dos Winstons. Daí a inquietante explicitação que surge e que, de alguma maneira, está condensada no título: "Eles somos nós".
Não se trata, entenda-se, de incluir Nós na hiper-abundância de filmes de terror que tomou conta de uma parte significativa do mercado. Jordan Peele será tudo o que se quiser, menos um funcionário de qualquer formatação de qualquer género. Já o sabíamos, claro, através da sua primeira longa-metragem, Foge (2017), brilhante parábola sobre a coexistência de negros e brancos na América contemporânea (que lhe valeu um Óscar de melhor argumento original).
Como experimentação narrativa, o novo filme não deixa de ser um parente próximo do anterior, mas talvez ainda mais arriscado e inventivo nas suas premissas. Lembremos apenas que Nós se inicia com uma cena num parque de diversões em que encontramos a futura mãe dos Winstons, ainda criança: ao vaguear pelas várias atrações, entra numa barraca de espelhos em que encontra uma outra menina que parece duplicar a sua figura...
Somos confrontados com uma série de peripécias (muitas e surpreendentes!) que vão adensar e, por fim, "explicar" todo este jogo de duplos mais ou menos fantasmáticos - a sua revelação não passa por este texto porque envolve, naturalmente, o trabalho de leitura e decifração do próprio espectador. Sublinhemos apenas que essas vivências de um mundo dividido em dois nos chegam através da metódica intensificação de componentes de exuberante artifício (dos contrastes cromáticos à música de Michael Abels) que, bem nos recordamos, já estavam presentes em Foge. Dito de outro modo: Jordan Peele é um herdeiro da grande tradição do Grand Guignol, em tudo o que ela implica de encenação teatral e, no limite, festiva dos nossos medos mais viscerais.
Que medos são esses? A resposta a tal pergunta está longe de ser automática. Em boa verdade, envolve as dúvidas e perplexidades que ecoam na filosofia existencial que atravessa um filme como Nós. Porquê? Porque Jordan Peele coloca em cena o assombramento que habita a própria comunidade em que tudo acontece. Como se os indivíduos e as famílias deparassem com a indizível perturbação de não se reconhecerem nos seus vizinhos e semelhantes...
Enfim, não será necessário relembrar que, do "western" clássico a algumas aventuras inter-galácticas, tal perturbação atravessa toda a cultura cinematográfica americana. Aliás, para os mais dados a especulações simbólicas, também não será preciso referir que o título original do filme, Us, reproduz as duas primeiras iniciais de um país que se construiu a partir da utopia da união perfeita das suas comunidades, isto é, dos seus "United States".
Entretanto, se é verdade que os modelos correntes do telefilme são quase sempre dramaticamente previsíveis e humanamente simplistas, não é menos verdade que tais modelos podem servir de base a projetos de respeitável consistência. É o caso de outra estreia que merece ser descoberta. Chama-se Uma Criança como Jake, foi realizado por Silas Howard, e coloca em cena um menino de quatro anos que revela especial gosto em vestir-se à maneira de fadas e princesas... Em boa verdade, o filme é menos sobre a criança (presente em poucas cenas) e mais sobre o efeito que o seu comportante desencadeia nos outros, sobretudo no espaço familiar e na escola. Sem militantismos fáceis nem generalizações gratuitas, eis uma narrativa subtil sobre a complexidade do fator humano - com excelentes interpretações de Claire Danes e Jim Parsons.
Atenção ainda a O Homem Pykante - Diálogos com Pimenta, mais um exercício de sugestivo experimentalismo com assinatura de Edgar Pêra. Trata-se de colocar em cena o poeta e ensaísta Alberto Pimenta, rapidamente superando qualquer convenção banalmente documental: o cineasta filma a sua personagem através de uma evidente cumplicidade, em última instância celebrando a precisão do dizer e o apelo libertador que a poesia pode conter. Num tempo de saturação de imagens, é bom deparar com um objeto de cinema que sabe celebrar o encantamento possível das palavras.