O início da vida mediática de Era Uma Vez... em Hollywood ficou marcada pelo triste, e ao mesmo tempo memorável, episódio na conferência de imprensa do Festival de Cannes, em que uma jornalista do The New York Times decidiu confrontar Quentin Tarantino com a contabilidade dos diálogos da atriz Margot Robbie (que no filme interpreta a trágica Sharon Tate)..Comentava então a repórter que Robbie tinha muito poucas deixas e que isso não era compatível com o seu talento, insinuando a comparação com os colegas ao seu lado na mesa, Leonardo DiCaprio e Brad Pitt. A tal afirmação Tarantino respondeu de forma curta e seca, instalando uma atmosfera pesada na sala: "Rejeito a sua hipótese.".A lembrança deste momento algo caricato, e tão sintomático da febre dos nossos dias, serve apenas para fazer pensar. A dita observação cresceu de tal forma na imprensa que se tornou um dado adquirido, chegando-se ao ponto de dizer que Sharon Tate não estaria bem representada - não por culpa da atriz, entenda-se, mas do realizador..Um tiro ao lado que nos suscita um primeiro apontamento sobre esta grande obra, que está aí para estremecer a silly season a meio de agosto: é, ao contrário do sugerido, talvez o mais decente e subtil tributo que se poderia prestar a essa figura do imaginário de Hollywood. Tarantino filmou-a como um ser luminoso a atravessar um sonho crepuscular, presença da ordem do inefável, corpo que dança e habita o filme carregando o seu próprio mistério. Tate pede essa distância respeitosa. Representa a impossibilidade de se sondar para além da linguagem corporal (essa, sim, captada com sentido de pormenor). Se tivesse "mais coisas para dizer", ou melhor, se levasse uma injeção de psicologia, muito provavelmente estaríamos diante de um falso golpe de realismo, por oposição ao assumido idealismo..Posto isto, o mais curioso é que Era Uma Vez... em Hollywood (a fábula está desde logo expressa no título) não se trata sequer de um filme sobre Sharon Tate e o seu aterrador destino, às mãos de membros da "família" de Charles Manson, na madrugada fatídica de 9 de agosto de 1969. Este é o acontecimento em que Tarantino pega para falar do fim, simbólico e concreto, de uma época, e através dele elaborar uma apurada reescrita. Que é como quem diz, a sua idiossincrática fantasia hollywoodesca..Ora, o verdadeiro protagonista de Era Uma Vez... em Hollywood chama-se Rick Dalton (nunca existiu) e é vizinho do casal Tate e Roman Polanski. Trabalha como ator em filmes de baixo orçamento e séries televisivas, é famoso pela sua personagem de um caçador de prémios, e faz-se acompanhar por Cliff Booth, o seu duplo, que na altura em que os conhecemos já é mais o seu faz-tudo e ombro amigo do que propriamente o tipo que lhe poupa males maiores numa rodagem. Interpretados respetivamente por Leonardo DiCaprio e Brad Pitt - o primeiro a atravessar uma crise no seu modesto estrelato, o segundo um espírito leve e sem grandes ambições - a sua relação é o que mais se aproxima de uma imagem romântica..De tal maneira que se sente, até da parte do cineasta, um carinho especial por ambos... Alguma vez se imaginaria uma breve fenda emocional numa cena escrita por Tarantino? Pouco provável. E, no entanto, é isso que temos quando o inseguro Dalton lacrimeja perante o elogio de uma atriz de 8 anos que com ele contracena num saloon, ou ainda quando os dois amigos estão em vias de se "separar" na noite que é o fim de uma era..Mas antes de chegar ao cenário dessa noite, Tarantino leva-nos a dar uma volta pelas ruas de Los Angeles, com paragem no recinto de um estúdio. E neste trajeto sem rumo vai-se desenhando a voluptuosidade de Era Uma Vez... em Hollywood: a vibração de um ambiente que, mais do que reconstituído, está alicerçado numa cinefilia sem freio. Os sixties, reta final dos anos dourados de Hollywood, projetam-se aqui numa nostalgia pegada pelos cornos, com uma banda sonora transbordante (muitas vezes simulada no rádio do carro), nos detalhes de guarda-roupa, que falam por si, ou nas vinhetas, recriações várias e piscadelas de olho às produções e às personagens (reais ou não) da época, como Steve McQueen ou Bruce Lee..O que dizer então dos deliciosos cameos dos veteranos Al Pacino, Bruce Dern, ou ainda de Kurt Russell e Zöe Bell? Estes dois últimos surgem como um casal de coordenadores de duplos, que é, recorde-se, precisamente a profissão dos seus personagens em À Prova de Morte (2007). E nessa referência à própria filmografia de Tarantino, ao seu universo, reforça-se uma genuína obsessão de que estará na base da magra narrativa de Era Uma Vez... em Hollywood. A saber, o olhar sobre a nobreza do duplo, figura de bastidores no substrato de uma indústria, que é também um conceito de "substituição", a possibilidade que o cinema tem de oferecer uma alternativa..Esse olhar imprime-se não só no personagem do bom companheiro Cliff Booth, que passa a ser como um duplo na vida real de Rick Dalton, mas também no modo como Tarantino explora o conceito a partir de dentro. Por exemplo, a rodagem de uma cena de western com Dalton/DiCaprio acaba por ter uma espécie de "duplo" noutra cena do plano da realidade no Spahn Ranch, onde o gangue de Manson recebe, hostil, ainda que sem pistolas ou chapéus de cowboy, Booth/Pitt. Da mesma forma, num dos mais belos momentos de Era Uma Vez... em Hollywood, em que Tate/Robbie entra numa sala de cinema para sentir como o público reage aos seus gags no grande ecrã (no filme The Wrecking Crew, com Dean Martin), quem vemos nessa tela é a verdadeira Sharon Tate... A sua "dupla", Robbie, limita-se a contemplá-la..Como se tivesse fisicamente uma película na mão - ideia quase fetichista -, Quentin Tarantino corta, cola e manuseia a essência de uma época com a firmeza de quem já passou de enfant terrible ao patamar seguinte: o direito à fantasia plena do cineasta. A violência e o humor sacana a que nos habituou reveste-se neste nono filme de uma doçura pouco comum, que ora baralha as coordenadas ora impulsiona a imersão na textura granulada desse ano de 1969. Mas não é apenas uma questão de suporte. Em Tarantino, a espessura fílmica e cinéfila tem sempre uma alma, nem que seja danada. Neste caso, voltou-se para uma certa melancolia. E dentro dela, o seu nome continua a ser sinónimo de impetuosa originalidade..***** Excecional