Professor da Faculdade de Direito da Queen's University em Belfast, Colin Harvey analisa a problemática do Brexit do ponto de vista de quem está na Irlanda do Norte..Defensor do backstop, diz que a importância do Partido Unionista Democrático (DUP) neste debate está inflacionada, lembra que o regresso de uma fronteira física entre as duas Irlandas viola o Acordo de Sexta-Feira Santa que, em 1998, pôs fim a décadas de conflito sangrento entre unionistas e republicanos..Em entrevista ao DN, o académico, que lidera o projeto hhtps://brexitlawni.org sobre as consequências do Brexit na Irlanda do Norte, lembra que aquele mesmo acordo dá aos cidadãos a liberdade de escolher entre a cidadania britânica ou irlandesa e prevê também a possibilidade de uma consulta sobre a permanência da Irlanda do Norte como parte do Reino Unido..Sublinhando que, no referendo de 23 de junho de 2016, 56% dos irlandeses votaram pela permanência na UE, Colin Harvey critica o governo de Theresa May e o comportamento da maioria dos deputados no Parlamento de Westminster, concluindo: "O governo da República da Irlanda e a UE têm mostrado uma preocupação mais genuína em relação à Irlanda do Norte do que o governo britânico.".Em dezembro, o ex-primeiro-ministro britânico John Major afirmou o seguinte: "Algumas opiniões são de uma ignorância gritante sobre o provável impacto que pode ter na Irlanda uma mexida no Acordo de Sexta-Feira Santa. Para essas pessoas, a exigência irlandesa de um backstop é um truque, um truque para manter o Reino Unido na União Aduaneira. Aqueles que gozam e menosprezam o backstop deveriam refletir sobre os riscos de destruir esta opção e deveriam parar de acreditar em alternativas que não existem em lado nenhum e nem sequer foram inventadas por ninguém." Concorda, de alguma forma, com estas declarações?.O Brexit vai ter um grande impacto na Irlanda do Norte e existe uma necessidade real deste procolo sobre um backstop. A razão pela qual esse backstop é preciso é clara. É necessário proteger o Acordo de Sexta-Feira Santa, a cooperação, garantir que não haverá o regresso de uma fronteira física na Irlanda do Norte. O protocolo é absolutamente necessário. Estou muito preocupado com o impacto do Brexit no processo de paz da Irlanda do Norte..Acha que existe alguma hipótese de o Partido Unionista Democrático votar a favor do acordo do Brexit, nesta terça-feira, na Câmara dos Comuns?.Neste momento isso não parece muito provável. Mas é preciso ter em mente que o DUP não fala em nome da maioria das pessoas da Irlanda do Norte, pois a maioria das pessoas aqui na Irlanda do Norte é a favor do backstop e eu acho que, por vezes, isso se perde um pouco no meio das notícias que são passadas sobre a Irlanda do Norte. O DUP não fala em nome de toda a Irlanda do Norte, nem em relação a este assunto nem a relação a outros..A visibilidade do DUP tem que ver com os deputados que tem no Parlamento de Westminster?.Sim. E também com o acordo que tem com o atual governo. Por causa da vulnerabilidade de Theresa May, ela está muito dependente do apoio desses deputados na Câmara dos Comuns. Nesta discussão do Brexit, o DUP tem uma influência desproporcionada, é trágico que eles tenham conseguido ter tal influência no sistema de Westminster..Se o Sinn Féin ocupasse os sete lugares de deputados que tem em Westminster isso faria de algum modo alguma diferença neste debate?.Não acho. O Sinn Féin está numa plataforma abstencionista e os deputados foram eleitos nessa base. Acho, aliás, que se eles ocupassem os seus lugares em Westminster isso iria unir o Partido Conservador. Mas claro que, em resultado disso, o DUP tem uma voz desproporcionada nesta discussão. Até porque na Irlanda do Norte, 56% das pessoas votaram contra o Brexit em 2016. E essa oposição à saída da União Europeia tem vindo a subir desde então. Acho que isso também é um facto que, muitas vezes, se perde no meio de todo este debate..O medo maior dos unionistas é que este backstop possa acidentalmente unir a ilha da Irlanda?.Acho que há um grande mal-entendido em relação ao protocolo do backstop. O acordo de saída não afeta a posição constitucional da Irlanda do Norte e esse argumento, que ouvimos do DUP, está errado. O que o acordo de saída tenta fazer é prever um mecanismo especial para a Irlanda do Norte, que realmente proteja aquilo que já existe. Tem impacto zero no futuro constitucional da ilha. Eu acho que isso é toda uma discussão paralela..Mesmo que os deputados do DUP votem contra o acordo do Brexit, ao lado do Labour e de potenciais rebeldes conservadores, na terça-feira, isso não quer automaticamente dizer que votassem depois, ao lado do Labour, numa moção de censura contra May, pois não?.Bem, teria de se perguntar a eles, mas uma coisa não implica a outra. É uma questão diferente. O DUP não é politicamente muito próximo do Labour e certamente não quer um governo Labour. Mas a sua prioridade neste momento é a preocupação com o backstop. Esta proposta feita pela UE é muito sensível. E é para se proteger a situação especial que existe na Irlanda do Norte. Acho que a forma como tem sido debatida em Londres, em Westminster, é totalmente incrível..Mas se este acordo, que inclui o backstop, não passar, o que pode acontecer na fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda a seguir ao dia 29 de março?.Depende do que vai acontecer a seguir. Mas um cenário de Brexit sem acordo é um desastre para a Irlanda do Norte. Há muita ansiedade, uma preocupação tremenda nesta sociedade, relativamente a um cenário de Brexit sem acordo. Todos esperam que não estejamos aí dentro de alguns meses. Um cenário sem acordo será um desastre. E não apenas a nível comercial. Terá impacto nas relações entre as pessoas. Esta ilha habituou-se à invisibilidade daquela fronteira. O ressurgimento de uma fronteira física na ilha da Irlanda seria uma tragédia e uma coisa imperdoável no contexto da atual discussão. Por isso é tão importante que este protocolo seja aceite..Há outro debate em curso na Grã-Bretanha, sobre a realização de um novo referendo, seria bom, da perspetiva da Irlanda do Norte, que o Reino Unido mudasse de ideias. Isso resolveria o problema. Mas, neste momento, acho que o desfecho que ninguém quer é uma saída sem acordo. Aqueles que querem criar a ideia de que uma saída sem acordo não teria qualquer problema estão a agir de forma muito irresponsável. Uma saída desordenada teria um grande impacto na ilha da Irlanda..O Acordo de Sexta-Feira Santa permite às pessoas da Irlanda do Norte ter nacionalidade irlandesa, britânica ou ambas....Essa é uma parte muito importante do Acordo de Sexta-Feira Santa, o direito de, por nascimento, ser britânico, irlandês ou ambos. Uma das implicações do Brexit é que ele significa um aprofundamento ainda maior das divisões entre as identidades irlandesa e britânica. Isto porque uma identidade pode passar a significar pertencer à UE e outra pode passar a significar pertencer a um país terceiro. Tudo isto é uma tragédia em relação ao processo de paz na Irlanda do Norte..E se, com o Brexit, muitas pessoas pedirem a nacionalidade irlandesa, mas continuarem a viver na Irlanda do Norte (que é uma província autónoma do Reino Unido)?.É uma pergunta muito boa. Há um debate intenso sobre quais serão os direitos dos cidadãos depois do Brexit. Há muitas promessas feitas sobre os direitos. Há um grande debate sobre a aplicação prática desses direitos. Uma das grandes questões que surgiu nesta discussão foi a da unidade irlandesa, da fronteira, pois o Acordo de Sexta-Feira Santa contém um mecanismo que permite às pessoas livrar-se da fronteira saindo do Reino Unido. Uma das formas de evitar o regresso de uma fronteira física é a Irlanda do Norte sair do Reino Unido. E o acordo contém um mecanismo que permite às pessoas votar. A questão pode ser suscitada em caso de Brexit sem acordo..É uma espécie de referendo previsto no Acordo de Sexta-Feira Santa....O estatuto constitucional da Irlanda do Norte, segundo o Acordo de Sexta-Feira Santa, é suposto assentar no princípio do consentimento. Então, enquanto as pessoas quiserem estar dentro do Reino Unido tudo bem, mas se quiserem sair tudo bem também. Uma das coisas que o cenário de Brexit sem acordo pode suscitar é a questão de dar o direito ao povo da Irlanda do Norte de dizer se quer sair do Reino Unido e permanecer na UE, juntando-se à Irlanda. É notável que isto não esteja a ser discutido de uma forma aberta..Acionar este mecanismo requer sempre a autorização do governo britânico, como aconteceu por exemplo com o referendo sobre a independência da Escócia?.Seriam dois referendos: um na Irlanda do Norte, outro no sul, na Irlanda. Para iniciar esse processo na Irlanda do Norte teria de ser o governo britânico a desencadeá-lo. Há um mecanismo no Acordo. Num cenário de Brexit sem acordo, esta tem sido mencionada como uma opção para evitar o regresso de uma fronteira física entre as duas fronteiras. Na sessão constitucional do Acordo de Sexta-Feira Santa existe uma fórmula que fala sobre como isso seria feito. A liderança do Sinn Féin esteve nesta semana [que passou] em Bruxelas e enfatizou esta questão. Parece-me que o Acordo de Sexta-Feira Santa não está a ser totalmente compreendido em Londres..Qual pensa que será o desfecho de todo este debate sobre o Brexit? Fala-se agora na extensão do Artigo 50.º e até em eleições antecipadas no Reino Unido....Neste momento é muito difícil de prever. Não há maioria na Câmara dos Comuns em Westminster, também em relação a um Brexit sem acordo. Há uma divisão muito acentuada. A primeira-ministra [Theresa May] poderá tentar fazer passar uma qualquer outra versão deste acordo no Parlamento. Mas outra versão que também está a ganhar força é a de um segundo referendo para ver se o Reino Unido quer mesmo realmente sair da UE..Mas isto iria sempre requerer uma extensão do Artigo 50.º....Absolutamente. Vimos o Labour a suscitar já a questão de uma extensão..Depois, para essa extensão, seria preciso unanimidade entre todos os 27 Estados membros da UE....Obviamente. Não é algo que o Reino Unido possa fazer unilateralmente. Mas a situação neste momento é de tal forma caótica que é muito difícil prever o que vai acontecer. Isto está a causar uma grande ansiedade na Irlanda do Norte. Há pessoas que vivem na zona de fronteira, que passaram por um conflito muito traumático, que estão mergulhadas na incerteza. O caos em Westminster é irresponsável e imperdoável, tendo em conta o que esta sociedade já passou. A falta de liderança em Westminster em Londres é uma coisa realmente chocante..Sou muito claro: o governo da República da Irlanda e a UE têm mostrado uma preocupação mais genuína em relação à Irlanda do Norte do que o governo britânico. A UE 27 deu mais atenção a este sítio do que o governo e Westminster e as pessoas aqui realmente agradecem esse apoio e solidariedade da UE em relação à Irlanda do Norte. Esse nível de liderança não tem existido em Londres. É verdade. Em Bruxelas há uma grande preocupação em relação ao que se está a passar aqui.