"É uma coisa que não sai da cabeça. Só me lembro de receber uma pancada e a partir daí apaguei. Estive inanimado no chão 20 minutos, a receber pontapés em todo o lado, pelo que me disseram. Foi bater num morto." Os acontecimentos daquela tarde de 20 de novembro de 2011, em Sobrado, Valongo, são uma "memória recorrente" para Fernando Pinto, antigo árbitro assistente da Associação de Futebol do Porto agredido em campo no final de um jogo entre o Sobrado e o Atlético de Rio Tinto, da 1.ª divisão do Campeonato Distrital do Porto.."Parti os ossos da cara em três lados; deslocaram-me o maxilar e, durante um mês, só me alimentei a líquidos, eram umas dores... Sofri uma lesão no tornozelo que me obrigou a estar mais de um mês em fisioterapia. Tive um desvio de seis milímetros na vista..." Fernando Pinto ficou muito maltratado, teve de ser transferido de uma ambulância normal para uma do INEM a meio da autoestrada e esteve internado no hospital durante um mês..Quase oito anos depois, algumas das marcas físicas continuam presentes, como os óculos que passou a ter de usar devido ao desvio na vista. Mas são os flashbacks daqueles momentos que antecederam a perda de sentidos as marcas mais difíceis de apagar. "Isto nunca mais sai. Por muitos anos que passem, isto vem sempre à cabeça numa altura ou noutra", diz ao DN..Confirmados como agressores em tribunal, um jogador do Sobrado, Marco Bessa, foi condenado a quatro anos e cinco meses de prisão efetiva, um outro, Bruno Marrafeiro, a três anos e cinco meses, e dois adeptos do clube de Valongo a três anos e dois meses, que começaram a cumprir em 2016..118 agressões em duas épocas e meia.Isso é o que torna o caso de Fernando Pinto mais raro, as penas de prisão efetivas. Não as agressões, essas continuam a registar-se quase semana após semana em campos de futebol pelo país fora, sobretudo no futebol amador e no futebol jovem..Só nesta época, a Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol já registou 22 casos de agressões a elementos de equipas de arbitragem no futebol e no futsal. Desde 2016, altura em que o atual presidente, Luciano Gonçalves, tomou posse, foram já contabilizadas 118 agressões, segundo dados disponibilizados ao DN pela APAF - em duas épocas e meia.."Infelizmente, desde a última vez que intervim nesta casa, na casa da democracia, há sensivelmente um ano, onde se falou sobre a violência no desporto, cerca de 40 árbitros foram agredidos nas modalidades de futebol e futsal. Só nesta época desportiva, que teve início a 1 de julho de 2018, já contabilizámos 21 agressões a árbitros de futebol e futsal", alertou Luciano Gonçalves, no âmbito de uma audição pública sobre o desporto na Assembleia da República, a 12 de fevereiro. Entretanto, um outro caso fez já aumentar os números. A cadência é alarmante..Ao contrário do que aconteceu com os agressores de Fernando Pinto, na maioria destes casos os agressores não chegam sequer a cumprir prisão efetiva, predominando as penas com execução suspensa..Foi o que aconteceu, por exemplo, a Marco Gonçalves, que em abril de 2017 agrediu o árbitro José Rodrigues com uma joelhada no nariz, ao segundo minuto do jogo entre o Canelas 2010 e o Sport Clube de Rio Tinto, também no campeonato distrital da Associação de Futebol do Porto..O jogador do Canelas foi condenado em tribunal a uma pena suspensa de 11 meses, com a juíza a justificar a decisão com "a postura do arguido quer nos dias que sucederam a agressão, penitenciando-se publicamente pelo seu ato, quer no julgamento, em que confessou a agressão, afirmou-se arrependido e pediu desculpas publicamente à vítima", como consta da sentença..O avançado, que foi filmado em flagrante a atingir o árbitro com o joelho depois de ter recebido ordem de expulsão por agressão também a um jogador adversário, foi ainda condenado a pagar um total de pouco mais de 16 mil euros ao árbitro em indemnizações. A nível da justiça desportiva, a pena foi mais pesada, com Marco Gonçalves suspenso por quatro anos e meio pelo Conselho de Disciplina da AF Porto..Justiça com mão leve?.Na maioria dos casos, contudo, as sanções "são irrisórias", aponta a APAF. Para Luciano Gonçalves, "aí reside um dos principais problemas em não se conseguir reduzir ou mesmo terminar com esta autêntica vergonha. Alguns castigos são verdadeiramente irrisórios, levando inclusive à chacota e ao gozo para com a arbitragem, tanto a nível desportivo como cível", diz ao DN.."Há multas de 200 euros para condenar uma agressão, é vergonhoso. Em tribunal, existirem juízes que consideram os casos de agressão uma situação inerente à arbitragem é de bradar aos céus. Começamos agora a verificar, por parte de algumas comarcas, penalizações mais adequadas e com multas mais elevadas, mas o caminho a percorrer ainda é longo", queixa-se o presidente da associação dos árbitros . .Nuno Cerejeira Namora, advogado que representou o árbitro José Rodrigues em tribunal no caso da agressão do ex-jogador do Canelas Marco Gonçalves, diz que o problema, mais do que da justiça, é social.."O que acontece é que o direito processual penal, uma vez que respeita aos mais supremos direitos das pessoas (como a vida, a integridade física, a saúde...), é exigente no que toca à análise dos meios probatórios. Só pode haver condenação quando o juiz, no seu entendimento e tendo em conta essas mesmas provas, considerar que é indubitável que o agente praticou o crime. Todavia, os depoimentos das testemunhas, por motivos exteriores, são muitas vezes fracos, raramente atestam o que viram, raramente falam do que efetivamente aconteceu, o que culmina frequentemente na inexistência de meios probatórios suficientes para a condenação dos agentes. É um problema eminentemente social", considera ao DN..O árbitro José Rodrigues, que se escusou a falar à nossa reportagem, ficou com o septo nasal partido, na sequência da agressão, tendo precisado de intervenção cirúrgica (uma turbinectomia bilateral e uma rinosseptoplastia). Esteve impedido de voltar a arbitrar durante três meses e sofreu outros danos morais que o tribunal criminal de Gondomar deu como provados: "Humilhação, vexame social e exposição pública"; "sentiu medo, receio e embaraço"; "evitou lugares que habitualmente frequentava por recear ser interpelado"; "sofreu um desgaste psicológico que o transformou"; "foi afetado na sua autoconfiança e na sua autoestima". Entre outras coisas mais, descritas na sentença.."Além dos valores monetários que teve de dispensar no tratamento das sequelas provocadas pela joelhada, o episódio trouxe-lhe ainda um mediatismo não desejado. Forçou-o a readaptar hábitos e rotinas em virtude do reconhecimento e vexame públicos, não só a ele mas a toda a família. Mesmo que assim não desejasse, as sequelas evidenciadas na sua face exigiram-no", refere o advogado Nuno Cerejeira Namora..Em tribunal, apenas não ficou provada a ameaça que José Rodrigues disse ter-lhe sido feita por Marco Gonçalves à saída do campo: "Vou foder-te todo e à tua família." Apesar de ter sido corroborada por várias testemunhas, foi negada por outras duas, dois agentes da PSP, que afirmaram não ter ouvido nenhuma palavra.."Em virtude de não se ter logrado provar a ameaça que o jogador proferiu, não se pode considerar que os danos infligidos ao árbitro tenham sido compensados. Mas mesmo que o tivessem sido, nada apaga o mediatismo que a situação veio a alcançar e, consequentemente, os comentários que ainda hoje lhe são dirigidos", aponta o advogado de José Rodrigues..O risco de abandono dos árbitros.Apesar das ondas de choque provocadas por casos que conhecem a luz mediática, como o foi este protagonizado pelo ex-jogador do Canelas, o fenómeno não tem sido contido. Nesta época, as más notícias continuam a surgir..Já neste mês de fevereiro, um jogador do Figueiró dos Vinhos agrediu um árbitro no final da primeira parte do jogo com o Cadas, no distrital de Leiria, e outro juiz foi agredido por um treinador adjunto do Palmelense, no distrital de Setúbal, denunciou o presidente da APAF. Em janeiro, no distrital de Lisboa, um árbitro foi agarrado e empurrado por um jogador do Atlético da Malveira a quem mostrou cartão vermelho..Em dezembro passado, no distrital de Vila Real, o jogo entre o Atei e o Vidago foi interrompido já em tempo de compensação, quando o auxiliar Rúben Pereira terá sido agredido por um jogador do Atei. Em outubro, foi agredido um árbitro de apenas 17 anos, que apitava a partida do campeonato distrital de futsal feminino de Lisboa entre Paulenses e Pregança. E a lista continua..Alguns dos árbitros acabam mesmo por abandonar a arbitragem, admite Luciano Gonçalves. "Sim, temos tido algumas desistências. Mas em muitos casos temos conseguido, em conjunto com os Conselhos de Arbitragem distritais, demover os árbitros dessa ideia, dando-lhes todo o apoio e força", refere..José António Pereira, presidente do Conselho de Arbitragem de Aveiro, também sublinha o problema. "Na época passada tivemos cerca de 90 inscritos nos cursos de arbitragem, nesta época já só tivemos metade", diz ao DN. Uma redução que o dirigente acredita possa ter algo que ver com o facto de, na época passada, o futebol distrital em Aveiro ter conhecido "três ou quatro casos graves" de agressões a árbitros..Um deles, amplamente divulgado, foi o que levou o árbitro Leonardo Marques a ter de interromper, ao intervalo, o jogo entre Beira-Mar e União de Lamas, depois de ter sido agredido por um adepto no momento de recolher aos balneários. O árbitro aveirense não quis falar com o DN, por estar ainda a decorrer o processo em tribunal. "Ele esteve um mês e meio sem querer sequer ouvir falar da arbitragem distrital", recorda José Pereira, que também passou por situação semelhante no seu tempo de árbitro.."Foi num jogo entre o Fermentelos e o Gafanha. Ainda hoje, se puder, evito lá ir. E não tenho nada contra quem está lá. Mas é daquelas marcas que nunca mais saem da cabeça. Foi uma invasão de campo aí com umas 300 pessoas e fui agredido. Estive cerca de um mês e meio sem apitar, tive de ser operado... Sabemos que isto pode acontecer, mas ninguém está preparado", conta..Pais problemáticos e falta de policiamento."Os árbitros vão abandonando", admite também Carlos Carvalho, presidente do Conselho de Arbitragem da AF do Porto, que identifica um dos principais problemas atuais no futebol: os pais dos jogadores. "Onde se acentua mais o problema da violência é nas camadas jovens. E a culpa é dos pais. Depois de pagarem as mensalidades para os filhos jogarem nos clubes, acham que têm direito a que os miúdos joguem e sejam os melhores. E depois, quando assim não é, revoltam-se contra treinadores, contra árbitros, contra tudo", diz..O homólogo de Aveiro concorda e reforça. "O problema maior é no futebol jovem. Hoje os pais pensam que têm um Cristiano Ronaldo em cada filho. Esquecem-se que às vezes os árbitros têm pouco mais idade do que os filhos deles", aponta José António Pereira..No extremo oposto, Carlos Carvalho denota outro foco: os jogos de masters, ou veteranos. "Ainda nesta semana tivemos uma agressão a um árbitro jovem num jogo de veteranos. As pessoas transformam os jogos em campo de batalha, vão para o campo extravasar os sentimentos de frustração que acumulam no dia-a-dia.".Para agravar o cenário, ambos referem "a falta de policiamento" como um "fator preocupante" que pode fazer aumentar a violência. A intenção da Direção Nacional da PSP em deixar de assegurar a presença em jogos amadores e juvenis em todo o país, sujeitando o policiamento a uma análise prévia de risco, levou a AF Porto a ameaçar mesmo parar as competições. Contudo, nesta sexta-feira, 22 de fevereiro, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, ordenou que todos os jogos, sejam de que escalões forem, e profissionais ou não, voltarão a ter a presença da polícia..Uma paixão difícil de esquecer.A Fernando Pinto, no entanto, nem o policiamento presente no campo do Sobrado, em 2011, valeu para evitar as bárbaras agressões que o deixaram inconsciente. Depois de três meses de baixa, contudo, voltou aos campos, de bandeirinha na mão. "Pensei em desistir, pensei, e pela minha família tinha desistido, mas não abandonei para não dar esse prazer a muita gente", justifica ao DN. Continuou mais dois anos, até 2013. "Só abandonei no limite da idade, aos 45 anos", diz.."Nos primeiros tempos andei com medo. Nos jogos tinha de ter condições de segurança garantidas, caso contrário não apitava. Uma vez, num dos jogos seguintes, um adepto aproximou-se do campo, numa situação que talvez até fosse normal noutra circunstância, mas eu disse que enquanto não trouxessem reforço policial não continuava o jogo", recorda sobre o trauma que o incidente lhe deixou - mesmo fora dos campos de futebol. "Tenho de passar quase todos os dias por Valongo e nos primeiros tempos tinha medo de voltar a encontrar aquelas pessoas. Depois, na altura do julgamento, voltei a ter." Lá está, "são marcas que ficam", repete..A arbitragem, no entanto, é uma marca mais forte. E Fernando Pinto continua hoje, aos 51 anos, ligado ao setor. "Sou presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol Amador de Penafiel", diz, esboçando um sorriso de quem percebe como isso pode soar estranho a quem ouve a sua história. "É uma paixão", justifica. "Sim, não é pelo dinheiro. Olhe, nesse jogo [em que foi agredido] fui receber 12 euros e meio." Uma paixão que, ainda para mais, foi herdada pelos dois filhos, um rapaz, de 24 anos, e uma rapariga, de 18. "Ambos têm o curso, mas a ela já lhe pedi para desistir. Custa muito ouvir uma filha a ser insultada."