Foi uma surpresa para vocês esta situação? Porquê, passados 50 anos, este tema é relevante?.Sofia da Palma Rodrigues (SPR) - Sim, para mim era completamente desconhecido. É relevante porque a história é um campo de batalha onde a memória se disputa. E a memória que temos hoje em dia, a história que nos é contada é a história dos vencedores do lado da Guiné e do lado de Portugal. Da Guiné, a história que o PAIGC quis contar, do lado de Portugal, a história que quem fez a Revolução de Abril quis contar. E estes homens ficaram completamente fora da história, num limbo cinzento em que perdem dos dois lados..Foi difícil chegar a estas pessoas?.SPR - Uma das coisas com que nos deparámos foi que existe um manto que cobre esta parte da história que as instituições públicas alimentam. Em alguns arquivos a que me dirigi disseram-me que a informação sobre estas pessoas tinha ficado toda na Guiné, porque, e cito, "essas pessoas para nós não foram importantes"..Mas como não foram importantes se eram uma tropa de elite portuguesa, uma das expressões mais importantes da guerra colonial?, retorquia eu. Acho que existe uma espécie de apagamento nos arquivos históricos nacionais sobre a importância destas pessoas - nem sequer há uma lista oficial de nomes..Chegámos aos comandos através de uma lista que um deles tinha guardado que tinha os nomes das três companhias de comandos que constituíram o batalhão. Entrevistámos cerca de 30 comandos. Mas no trabalho só usamos 18, e isso para termos uma narrativa à prova de bala..Havia algumas insinuações de que estas pessoas estavam a mentir sobre a história e o que fizemos foi só usar as entrevistas de quem tinha documentos que provavam que foram comandos africanos, nomeadamente a caderneta militar, ou cujo nome do seu bilhete de identidade coincida com o nome que estava na lista..O que têm em comum estas pessoas? Há mágoa, raiva?.Diogo Cardoso (DC) - Há espaço para tudo. Há quem tenha mágoa, outros revolta, outros estão conformados. Há quem pense até nesse tempo com boas recordações, que estavam do lado dos portugueses porque se sentiam portugueses. Outros que dizem o contrário..SPR - Também é comum a todos o sentimento de que foram enganados. E a ideia de que há algo que lhes foi prometido e nunca lhes foi dado, a que eles têm direito. Foi-lhes roubada uma cidadania portuguesa e foram completamente abandonados e deixados para trás no processo de descolonização..Sentiram que esta ainda é uma memória muito presente?.SPR - Existe uma memória presente de mágoa e sentimento de abandono. É como se ligássemos um botão. No dia a dia, esse sentir acaba por estar submerso, mas se se ativar o gatilho é impressionante como as narrativas de repetem..DC - Estas pessoas sentem-se completamente portuguesas. Quando fizemos essa pergunta diretamente, alguns deles disseram: "Não havia de me sentir português porquê? Jurei a bandeira, sou português." A questão é mesmo essa. Nasce-se português, empurram-te para a tropa, obrigam-te a lutar e depois abandonam-te e já não és português..SPR - A maioria destas pessoas não fazia uma escolha ideológica. As pessoas eram empurradas para um lado ou para o outro. Ou porque viviam em Bissau e iam para as Forças Armadas Portuguesas, ou porque estavam no campo e iam para o lado do PAIGC. Não era uma escolha..Têm como objetivo que esta parte da história seja reescrita?.SPR - Não sei se tem de se reescrever a história. Acho que tem de se abrir o espetro. Não é uma questão de ser verdade ou mentira. Não é que a história que foi contada até agora seja uma mentira. É apenas uma versão..Estas são vozes incómodas?.SPR - São incómodas porque desafiam o discurso de duas nações, um discurso oficial..DC - Desafiam, sobretudo, a criação de um mito em que nos revemos enquanto povo, que faz parte do nosso, entre aspas, orgulho nacional, e para a criação desse mito acabámos por deixar de fora todas estas narrativas paralelas, e também verdadeiras, que põem em causa a validade das versões oficiais..SPR - Quando se diz que a Revolução de Abril , cantada por Chico Buarque como "foi bonita a festa, pá", sem sangue... Foi sem sangue para quem? Do lado de lá, aquelas pessoas eram portuguesas e tiveram uma revolução bastante sangrenta..E Marcelino da Mata?.SPR - O Marcelino da Mata acaba por ser o personagem que ajuda o discurso oficial de ambos os lados oficiais. Do PAIGC, permite que se construa a imagem dos comandos africanos como monstros, do lado de Portugal, permite que se construa o discurso de uma nação integradora..Que reação querem provocar com este trabalho?.DC - De uma forma mais imediata, que estes homens obtenham o que reivindicam, que sejam devolvidos os seus direitos. De uma forma mais lata, que se abra esta discussão. A da integração na história oficial de narrativas paralelas que fazem parte da história portuguesa e que devem ser analisadas em toda a sua complexidade..SPR - O que queremos é gerar debate não-polarizado. Este é um tema incómodo para a direita e para a esquerda. Porque as linhas de análise com que tanto a direita como a esquerda têm para ler a guerra colonial e o 25 de Abril são estanques e estas narrativas não se enquadram. A narrativa do 25 de Abril de uma revolução bela e sem sangue é deitada por terra.