O novo romance de José Eduardo Agualusa, Os Vivos e os Outros, contém uma grande quota de autobiografia. O cenário é a ilha de Moçambique, onde viveu nos últimos quatro anos, e um dos protagonistas é Daniel, que tem muito de si pois, diz, "partilhamos a mesma origem, nascemos os dois no Huambo em 1960 e temos um passado comum". Quanto à narrativa, tudo se passa numa semana em que a ilha fica isolada do continente e os medos mais profundos surgem nas personagens que participam de um festival literário. Para Agualusa, era um ótimo local para o que queria contar: "Este era um livro que tinha de acontecer e surgiu enquanto lá vivia, devido aos imprevistos que enfrentei." Considera que a ilha inspira e que é ela própria um grande cenário literário: "Cheguei à ilha de Moçambique através da poesia, porque todos os grandes poetas moçambicanos e muitos portugueses escreveram sobre ela. Camões viveu lá dois anos e terá terminado de escrever aí Os Lusíadas, Bocage também lá viveu, como Tomás António Gonzaga, que foi deportado para lá, onde morreu e deixou família. Até hoje há na ilha descendentes seus e, talvez, também de Camões. Por isso, a ilha é um manancial, como são todos os territórios africanos devido às muitas histórias à espera de serem contadas." O romance era para ter sido lançado em abril mas ficou confinado à espera da reabertura das livrarias, tal como o escritor: "Vinha de um festival de literatura em Marraquexe e fiquei em Lisboa para passar uns dias e ver a família. Tinha viagem marcada para Luanda a 19 de março e já não fui. Desde então, estou aqui." Esta entrevista é feita, na maioria, em cima de afirmações que estão no romance devido ao alto teor autobiográfico, como quando uma da personagens diz "não há como a vida para urdir boas histórias". O que pensa disto Agualusa? "Concordo com essa afirmação, pois acontece-me muito quando escrevo." Acrescenta: "Muitas vezes não sei de onde veio o que escrevi pois estava num estado de semitranse. Essas são, normalmente, as melhores páginas e não as mais refletidas. As melhores vêm de algum lado e não se sabe de onde." Vamos, então, pescar perguntas em metade do romance, deixando o restante para os leitores encontrarem outras questões..Este é um romance que relata uma quarentena forçada de um grupo de pessoas. Arrepiou-o a coincidência com o livro que ficou confinado e proibido de chegar às livrarias? Incomodou-me, porque o livro foi para a gráfica há bastante tempo e o plano era fazer um lançamento - que já deveria ter acontecido - e tudo se complicou. Para quem escreve, tudo isto é uma tragédia..A pandemia portuguesa também teve uma espécie de início no evento literário Correntes d"Escritas. Mais uma coincidência com um livro que se passa num festival desses? É verdade. Aliás, um dos títulos de trabalho deste livro era O Mais Belo Fim do Mundo, porque lida com questões que têm que ver com tudo o que tem estado a acontecer..Há, contudo, estranhos acontecimentos que em Portugal não se verificaram. Falta-nos vida espiritual ou é fantasia de autor? O livro tem uma tese, a de que a palavra cria a realidade, a mesma defendida na Bíblia: "No princípio era o verbo." A palavra está no início de tudo e é a criadora da realidade, ou seja, o livro parte de um fim do mundo que não se sabe se aconteceu e em que os escritores reiniciam esse novo mundo escrevendo. A escrita e a arte de contar histórias têm esse poder de transformar a realidade..Uma das personagens diz: "Para muitas pessoas, nós escritores somos os novos oráculos." É isso que tem observado? Sim, porque é muito comum encontrarem-se situações desse tipo nos livros. A propósito desta pandemia citaram-se vários romances que falam de situações catastróficas no seguimento do aparecimento de um vírus. Não era muito difícil adivinhar essa hipótese e já muita gente avisara que iríamos ter um problema grave um dia destes, mas houve escritores que escreveram sobre esse tema. Neste próprio livro, que já foi escrito há algum tempo, existe uma citação que defende uma outra tese: a de que o tempo não é linear e que passado, presente e futuro coexistem no mesmo plano. Portanto, se acontecem eventos muito trágicos e traumáticos no futuro, algumas pessoas conseguem recordar esses eventos e aquilo a que chamamos previsões não seria outra coisa senão uma recordação..A ausência de internet é do que as personagens mais sentem falta na ilha! Um dos problemas que temos na ilha de Moçambique é o isolamento. Já aconteceu haver tempestades que derrubam os postes e durante um ou mais dias não há energia, internet e telefone, e é a partir de realidades como esta que foi nascendo a ideia do romance, onde há uma situação limite em que a ilha fica verdadeiramente isolada do resto do mundo e começa a prosperar esse rumor de que o mundo acabou do outro lado da ponte que liga ao continente. Ou seja, este livro nasce do rumor que corre numa ilha de que o mundo tinha acabado..Retoma uma personagem que começa a ficar habitual nos seus livros. Qual a razão? Que desaparecerá neste livro... O Daniel está como personagem secundária na Teoria Geral do Esquecimento porque fazia sentido naquele contexto após surgir em A Sociedade dos Sonhadores Involuntários como narrador. Não aconteceu de forma deliberada - que eu saiba - e já se verificou com outras personagens noutros livros..A autora "percebe a agonia da entrevistadora". Está habituado a isso nos festivais? Como qualquer romance, o livro é muitas coisas, mas esse lado satírico dos festivais literários aparece ao referir-se aos jornalistas de cultura ou, neste caso, aos moderadores. A vida do escritor atualmente passa muito por estes festivais. Felizmente, por um lado, pois são importantes para nos aproximarmos dos leitores, saber como recebem os livros e compreender os próprios escritos, porque eles ajudam a perceber os livros; também por razões económicas, porque estes festivais pagam - ou pagavam - aos autores. Por outro lado, a partir de uma certa altura, o escritor tem uma relação de amor-ódio com os encontros porque se está a escrever é perturbador ter de interromper para viajar e enfrentar perguntas que na maior parte não são interessantes. Repetem-se e acaba por ser cansativo..Participa em muitos festivais. Há algum que se destaque dessa mediania? Sim, há uns mais interessantes do que outros. Na Holanda, por exemplo, fui a vários festivais em que o formato era muito original. O que torna mais difícil a presença e, ao mesmo tempo, interessante pois somos confrontados com uma participação mais exigente. Esses desafios também são os que ficam na memória porque evitam o formato normal da mesa-redonda e da pergunta e resposta. Eu já estou nisto há 30 anos, portanto não custa nada mas entusiasma pouco. Há um festival de que nunca me esqueço, em Brazzaville, que tinha cem escritores mas sem público. Em contrapartida, fui a uma escola e os alunos estavam preparados e colocaram-me questões que nunca tinham sido feitas. O olhar fresco e inteligente não é muito comum em festivais..Qual é o melhor de língua portuguesa? Evidentemente, o de Paraty, no Brasil, que dura sete dias e as pessoas vão lá como que para uma festa. Ao mesmo tempo tem um público bastante exigente e sofisticado, estão lá leitores, jornalistas e editores de todo o Brasil e as perguntas são surpreendentes..Uma das personagens deu uma resposta numa entrevista que, de tão extemporânea, lhe ficou colada para a vida. Já lhe sucedeu? Não me aconteceu, mas é verdade que algumas frases se repetem a propósito de mim nas apresentações porque as pessoas são preguiçosas e vão à internet, onde aparece um texto muito antigo que escrevi e em que me autoapresentava. Aos olhos de hoje, já não me reconheço nele em muito, mas é esse texto que sistematicamente é utilizado para me apresentar. Mas todos sabemos de casos complicados de escritores que fizeram uma determinada afirmação no calor do momento, em que não se reconhecem e porque se esqueceram de que estavam em público e não entre amigos. Muitas vezes são essas frases que ficam, e hoje é pior porque as pessoas filmam com os telemóveis os disparates ditos numa intervenção e viralizam mais facilmente do que a parte inteligente. Muitas vezes essas palavras não refletem o conjunto da obra do escritor, mas ele ficará sempre preso a essa afirmação..A parte política não falta, como a de se dar um prémio literário em Angola para provocar a ala mais conservadora do regime... Isso chegou a acontecer. Houve um prémio de literatura em Angola, o Prémio Nacional de Cultura, que é o mais importante de carreira no país, e em determinada altura foi atribuído ao Viriato da Cruz e depois retirado. Acho que, sinceramente, ele não o merecia porque nunca chegou a ser poeta; tem sete poemas conhecidos, que são muito importantes, mas esse é um prémio para o conjunto da obra. Foi um equívoco que provocou um sururu no aparelho de Estado que obrigou a ministra da Cultura a voltar atrás e a retirá-lo para dar a outro autor..Alguém diz que "durante muito tempo os críticos europeus exigiam que escrevêssemos apenas sobre a África imaginada por eles". Isso mudou? Mudou, mas ainda há resquícios desse pensamento e sente-se isso quando um escritor africano sai do tema África e se atreve a escrever um romance sobre uma personagem europeia, por exemplo. Tal como para um agente literário é mais fácil vender o romance de um escritor africano que corresponda a esse imaginário do europeu do que um livro diferente, principalmente se ainda não for consagrado. Hoje, ninguém cobra nada ao Coetzee se ele escrever sobre a Austrália, mas um escritor africano jovem que esteja em fase de afirmação terá mais dificuldade em vender o seu romance se não se conformar com esse tipo de expectativa. Isso nunca se espera num escritor europeu, que tanto pode escrever sobre a Amazónia ou Zanzibar - aliás é tido como uma abertura de estilo e não de alienação..Também há quem faça uma crítica a uma boa parte dos livros das novas escritoras e diga que "são assustadores". Essa opinião é só da personagem ou também do autor? Essa personagem é um escritor moçambicano que representa em muito o homem africano tradicional. O problema dele é com a mulher sexualizada e com uma literatura feminina e feminista que existe hoje em África. Essa literatura assusta alguns homens, mas é cada vez mais forte pois resulta em boa parte do atual boom literário da Nigéria - que vai atrás da Chimamanda e é um fenómeno que impulsiona e explica a existência de uma série de escritoras africanas, algumas das quais muito boas. A Nigéria é o grande território literário hoje em África, até mesmo no resto do mundo, que também se explica por causa da ligação aos EUA - a Nigéria tem aí uma comunidade expatriada muito grande - e daí ser mais fácil fazer sucesso a partir desse país..Os autores africanos dos países de língua portuguesa não conseguem mostrar-se ao mundo como os da Nigéria? Não, mas uma grande parte desses autores nigerianos cresceram nos EUA, escrevem em inglês e estão no centro do mundo literário, sendo tudo mais fácil. Esse fenómeno já começou em Inglaterra há 20 anos e connosco só está a acontecer agora. Existem já autores novos, à escala da língua portuguesa, que se afirmam dentro do espaço cultural português e a partir de Portugal: a Djaimilia, a Yara Monteiro ou o Kalaf Epalanga..Outra personagem diz: "Falas como os escritores portugueses, eles é que escrevem porque sofrem e sofrem enquanto escrevem." Mantém-se essa situação intelectual? Sim, esse culto ao sofrimento é uma coisa portuguesa, mas não só, pois no Brasil isso acontece em São Paulo enquanto na Bahia não. Os paulistas são mais europeus no pessimismo e na melancolia e os baianos têm a alegria e o humor que não se encontram nos autores paulistas ou portugueses. Há exceções, a começar no Eça de Queiroz e a continuar no Rui Zink, mas não é a norma..Alguém afirma que "em Portugal não existe racismo, repetem os portugueses". Os anos passam e o problema mantém-se? E é bem atual! Se não existisse racismo não se debatia porque não se o faz sobre coisas que não há. Certas discussões surgem na sociedade porque ela no seu conjunto tem um problema em relação a isso e Portugal, evidentemente, tem. Não é um caso isolado e, como tudo o que acontece nos EUA tem reflexo no resto do mundo, a morte de George Floyd criou um movimento de indignação que está a ter repercussões também em Portugal. Quando se diz que a colonização portuguesa foi melhor do que outras é igual ao que se faz em Inglaterra ou França. Estes até podem dizer que tiveram um ministro da Cultura negro, o Leopold Senghor! Essa situação repete-se em qualquer país que foi uma potência colonial, mas não faz sentido essa competição sobre quem foi melhor pois qualquer sistema colonial assenta numa premissa que é a superioridade de um povo em relação ao outro..Os Vivos e os Outros De José Eduardo Agualusa, editado pela Quetzal, 252 páginas.