"Batuque é assim: uma pessoa pode ter um mal, pode ter problemas, mas quando entra no batuque esquece tudo. Tudo mesmo." Maria de Lurdes tem 61 anos e, quando dança, abre os braços e um sorriso enorme e esquece-se da idade e das dores naquele corpo que começa a fazer limpezas ainda de madrugada. "É o corpo que manda. Se queremos dançar, levantamo-nos e dançamos. Isto é só mexer o corpo, não tem nada que saber.".Batuque é assim: são grupos de 10 a 20 mulheres cabo-verdianas que se juntam sentadas numa meia-lua, com uma tchabeta entre as pernas. O batuque começa devagar. As mãos batem levemente na tchabeta, as vozes ainda baixinho. Primeiro, uma só voz, a seguir todas em coro. Depois o ritmo acelera. O som é cada vez mais forte e contagiante. De repente, uma das mulheres levanta-se e começa a dançar. O "pano da terra" enrolado na anca, o corpo como que em transe..Não admira que Madonna ficasse encantada com as batucadeiras e que as quisesse ter no seu disco e também nos concertos. "Aprendi muito com estas mulheres", disse a cantora numa das entrevistas que deu sobre Madame X. "São tão fortes, autênticas, cheias de alma, amorosas, generosas e gentis. Não se consegue aprender isto na escola e elas ensinaram-me essas coisas", disse. "É inspirador trabalhar com pessoas que tiveram de lutar, mas que ainda conseguem manifestar e partilhar alegria com todos nós."."A gente canta e diverte-se todas juntas. É uma alegria. Esquecemos as coisas ruins e mandamos tudo para longe", confirma Antonina Brito, de 74 anos, uma das integrantes da Orquestra Batukadeiras de Portugal, que, como todas as suas colegas, nasceu na ilha de Santiago, em Cabo Verde, e mora há muitos anos na zona da Grande Lisboa. "Todos os cabo-verdianos têm o batuque no sangue", declara Maria Zefémia, que na verdade se chama Maria de Lourdes Monteiro e tem 60 anos. "Aprendemos com os mais velhos, é uma coisa que começa em casa, na família.".Teresa Teixeira, de 68 anos, lembra-se de que foi a avó que a ensinou a batucar: "Ia para a fonte catar água e cantava, ia apanhar lenha e cantava, em qualquer trabalho estava sempre a cantar, porque eu gosto. Já estou reformada e quando as minhas netas estão lá em casa pedem sempre para tocar batuque. Canto muitos cantos que eram da minha avó e agora ensino-os às minhas netas.".Quando se juntam as mulheres, é inevitável que alguma comece a cantar ou a batucar. "Nem é preciso combinar nada, surge naturalmente. E podemos ficar assim um dia inteiro", garante Zefémia. "Trabalhei e criei oito filhos, 26 netos e quatro bisnetas sempre a trabalhar e sempre a cantar, é a minha alegria", conta Lourença Furtado, de 67 anos. Ana Brito, de 56, confirma: "Se fazemos tempo para trabalhar, também fazemos tempo para o batuque. Temos de nos divertir, tudo faz parte da vida.".Batuque "nocivo aos bons costumes"."O batuque é muito antigo, acho mesmo que é mais antigo do que a morna", diz Zefémia. O batuque (ou batuko, como algumas das mulheres lhe chamam) terá começado no século XVIII, na ilha de Santiago. Durante o período da colonização portuguesa, o batuque foi proibido por ser considerado "nocivo aos bons costumes". A repressão foi particularmente intensa durante o Estado Novo, sob pressão da Igreja. Maria Zefémia lembra-se bem: "Quando eu era pequenina, gostava muito de fazer o batuque, nas festas em casa, batizados, casamentos. Mas os meus pais não me deixavam. Esse género musical era proibido pelo sistema, era tocado só às escondidas, e eu ficava sempre a espreitar."."No início, não havia instrumento. As mulheres batiam com as mãos no peito. Depois passou a usar-se um pano enrolado entre as pernas, depois um saco plástico com panos lá dentro. E agora temos este instrumento de percussão que é a tchabeta, feita de napa", explica Zefémia. Os grupos são maioritariamente compostos por mulheres, mas também há homens que fazem batuque e há até grupos que incluem outros instrumentos. "Mas são normalmente as mulheres que fazem o batuque. Os maridos estavam fora, a trabalhar ou na guerra, e elas juntavam-se nas ribeiras ou nas casas, enquanto trabalhavam, e começavam a cantar e a desabafar", explica. "O batuque não tem um tema específico, é uma coisa que sai da alma. Pode ser improvisado ou pode ter uma letra. À batukadeira que tem a capacidade de improvisar chama-se profeta.".Zefémia, que foi educadora de infância e professora, veio para Portugal há 28 anos. Em 2011 fundou a Associação Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal, em 2014 criou o grupo de batucadeiras Ramedi Terra ("mezinhas" em crioulo) e foi ela que teve a ideia de, em 2015, fazer encontros com os vários grupos de batucadeiras. Um desses encontros, em 2017, teve como convidado especial o músico Dino D'Santiago. Foi a partir daí que nasceu a Orquestra Batukadeiras de Portugal, que reúne representantes dos vários grupos. "A associação trabalha não só na parte cultural mas também a igualdade de género, violência doméstica, saúde, cidadania, outras áreas que cada representante vai replicar no seu grupo", explica Maria Zefémia. A música é, portanto, só a parte visível desta orquestra..Três batucadeiras tocam com Madonna.Enquanto as batucadeiras se reuniam em ensaios nos sábados à tarde no bairro do Zambujal (Amadora), a cantora norte-americana Madonna mudava-se para Lisboa e começou a encontrar-se com músicos portugueses. "O Dino D'Santiago conheceu a Madonna entre junho e novembro de 2017 e falou-lhe de nós", conta Zefémia. "Ela ficou curiosa e quis conhecer-nos. Então em novembro fomos ao B.Leza e a Madonna viu o batuque." Viu e gostou..Maria Zefémia não pode dar muitos pormenores pois as batucadeiras assinaram um contrato de confidencialidade, mas isto pode contar: em julho de 2018, a Madonna chamou-as para gravar um áudio para o tema Batuka; em janeiro de 2019, convidou um grupo de batucadeiras a casa dela e gravou um documentário; em abril fizeram o videoclipe de Batuka; em maio algumas das batucadeiras foram a um workshop em Londres. "Em junho ela começou a digressão e nós ficámos cá."."Foi uma experiência. Muitas de nós não acompanhávamos a carreira dela e conhecê-la fisicamente também foi interessante. É bom quando uma artista do calibre dela se interessa pelo nosso trabalho", conta. "A música que ela fez não é bem batuque, é só um bocadinho", ressalva. Maria Zefémia esteve em Londres e participou na oficina de preparação para a digressão. "Éramos quatro, com mais idade, e nós não falamos inglês, então era muito difícil. Ela foi buscar outras mulheres, mais novas, são jovens cabo-verdianas que já têm o batuque no sangue.".O entusiasmo é moderado. É verdade que se começou a falar um pouco mais das batucadeiras, e isso é bom - "tudo o que promova a nossa cultura é bom e estamos sempre disponíveis para todas as aventuras" -, mas, por muito que se simule intimidade para as câmaras, a diva da pop não ficou amiga das batucadeiras nem alterou as suas vidas. Pelo menos da maioria delas..Antónia, Etelvina e Keila são as três únicas representantes da Orquestra Batukadeiras de Portugal que participam nos concertos de Madonna e, por isso, não estão aqui. "Temos acompanhado a digressão, vamos vendo os vídeos no Instagram", garante Zefémia. Mas nem ela nem as outras batucadeiras vão assistir ao concerto pois os bilhetes são muito caros. Sem tristezas. Quando Madonna subir ao palco do Coliseu dos Recreios já as batucadeiras terão cantado os parabéns a Albertina, que faz amanhã (domingo) 50 anos. E a festa terá, como sempre, muita cachupa, muito batuque e muita alegria. Como resume Antonina Brito, de 74 anos: "A gente canta e diverte-se todas juntas. É uma alegria. Esquecemos coisas ruins, mandamos tudo para longe." E para isso não é preciso pagar bilhetes de 75 euros..Madame X regressa a Lisboa, "o lugar onde tudo começou"."Madame X regressa a Lisboa, o lugar onde tudo começou. A vida é um círculo." Foi esta a legenda que Madonna escreveu há poucos dias no seu Instagram para um pequeno vídeo com imagens de Lisboa (as janelas, os elétricos, a calçada, os pombos, o céu) ao som de uma guitarra portuguesa e a voz da fadista Celeste Rodrigues..Madonna está em Lisboa para oito concertos (esgotados há muito) no Coliseu dos Recreios. Regressa, assim, à cidade onde morou entre 2017 e 2019 (ainda não sabemos se finda a digressão ela irá voltar) e onde nasceu o seu último disco, muito influenciado, como a própria admitiu, pelos músicos que aqui conheceu, sobretudo ligados ao fado e à música africana. No palco, além das batucadeiras cabo-verdianas, vão estar ainda o jovem guitarrista português Gaspar Varela, a trompetista portuguesa Jéssica Pina, o músico cabo-verdiano Miroca Paris (antigo colaborador de Cesária Évora), o percussionista português Carlos Mil-Homens e o também percussionista angolano Iúri Oliveira..São eles os responsáveis pela quota lusófona nos concertos de duas horas que se baseiam, acima de tudo, no último disco de Madonna, Madame X, lançado em junho. Entre os temas antigos que serão ouvidos estão Express Yourself, Vogue, Papa Don't Preach, La Isla Bonita e Like a Prayer. Pelo meio, segundo as nem sempre muito favoráveis críticas aos concertos nos Estados Unidos, Madonna irá falar muito, sobre a sua experiência em Lisboa, sobre Trump, sobre os direitos LGBT e sobre outros assuntos..A cantora não autoriza o uso de telemóveis nos concertos - o que pode causar alguma confusão à entrada mas lhe permite controlar todas as imagens que se conhece do espetáculo. Ainda assim, sabemos que a dado momento o palco irá recriar um bairro típico lisboeta, com azulejos e guitarras portuguesas. Resta saber como vai o público português receber Madame X.