Estarão os smartphones a criar uma geração de "cabeças no ar"?
Para algumas pessoas é particularmente difícil manterem-se focadas numa tarefa perante o apelo das redes sociais e das inúmeras plataformas de media que passaram a povoar o nosso quotidiano. Diversas investigações têm apurado que aqueles que, mais frequente e intensivamente, se dedicam a várias tarefas de media em simultâneo, são também aqueles que têm mais dificuldade em filtrar estímulos irrelevantes e que mais facilmente se distraem. Algo que surge associado a uma menor densidade de matéria cinzenta no córtex cíngulado anterior e da conectividade desta região do cérebro, com a precuneus (précunha).
Mas será essa característica dos seus cérebros uma causa ou uma consequência da Prática Intensiva de MultiTarefas de Media (PIMTM)?
A espantosa adaptabilidade do homo sapiens ao meio que o rodeia, passa pelas mudanças que o seu cérebro vai sofrendo ao longo dos tempos. As mudanças neurológicas e cognitivas vão também ocorrendo ao longo de uma vida, consoante os comportamentos dos diferentes indivíduos e dos estímulos inerentes. É sabido que a alfabetização ou a aprendizagem de cálculos aritméticos causam mudanças no desenvolvimento do cérebro, assim como o uso das novas tecnologias de comunicação, havendo o receio que, em determinados contextos, essa adaptação possa revelar-se negativa ou disfuncional.
A proliferação da televisão, a partir da década de 40 do século passado, levou a comunidade científica a debruçar-se sobre em que medida a "caixa que estava a mudar o mundo" estaria também a mudar a mente humana. Algo semelhante tem acontecido neste novo milénio em torno da Internet e das novas tecnologias digitais, com inúmeras investigações desenvolvidas sobre o seu impacto a nível neurológico e cognitivo.
A chegada dos smartphones projetou a nossa presença no online e a intensidade da PIMTM para um outro patamar, tornando-se algo quase omnipresente nas nossas vidas. Em Portugal, 8,58 milhões de pessoas (84,2% da população) esteve ligada à Internet no último ano, 98% dos quais com recurso a smartphone, segundo dados de entidades oficiais compilados no relatório Digital 2021. O tempo passado on-line aumentou ainda mais com a pandemia e a situação de isolamento, tendo atingido, ao longo do ano passado, uma média de 7h20 diárias, 2h18 dedicadas às redes sociais.
A publicação, em 2009, do resultado de investigações efetuadas nos Estados Unidos - por Eyal Ophir, Clifford Nass e Anthony D. Wagner - veio mostrar que, ao contrário do que se poderia esperar, os indivíduos com PIMTM são menos eficientes na manutenção da concentração, justamente em situações em que têm de lidar em simultâneo com vários conteúdos.
Como é comum no avanço do conhecimento científico, os dados obtidos nem sempre apontam univocamente numa direção. A generalidade das investigações tem, contudo, vindo a consolidar a associação entre os indivíduos com PIMTM e essa maior dificuldade de concentração (as exceção são estudos que não encontraram diferenças significativas, comparativamente com a generalidade dos outros indivíduos).
A menor densidade de matéria cinzenta no córtex cíngulado anterior (uma região frontal do cérebro envolvida em diversos processos cognitivos, nomeadamente no controle da atenção) nos indivíduos com PIMTM é observada - pelos investigadores Kep Kee Loh e Ryota Kanais - em dois estudos que desenvolvidos com recurso a imagens de ressonâncias magnéticas efetuadas a jovens adultos da University College London em 2014.
Dois anos mais tarde, a equipa da investigadora Mona Moisala leva mais longe esses dados, em testes efetuados na Finlândia, com recurso a ressonâncias magnéticas realizadas aos cérebros de adolescentes e jovens adultos, enquanto estes se dedicavam a tarefas relacionadas com a leitura e audição de textos. Quando eram introduzidos fatores de distração, os indivíduos com PIMTM necessitavam de aumentar mais a atividade nas regiões pré-frontais direitas e apesar disso tinham pior desempenho.
Os investigadores consideram que o aumento do recrutamento pré-frontal pode refletir uma necessidade acrescida de redirecionar a atenção (para a manter na tarefa central perante o surgimento do elemento de distração) parecendo indicar um funcionamento menos eficiente desta região.
A hipótese dos nativos do digital - aqueles que já cresceram com a Internet - serem uma geração de "cabeças no ar", marcada por essa menor capacidade de manter a concentração, é algo que tem vindo a gerar preocupações.
Procurando apurar as diferenças na capacidade de manutenção da concentração entre adultos e crianças, Susanne E. Baumgartner e Sindy R. Sumter levam a cabo, na Holanda em 2017, um estudo que passou pela observação do comportamento de dois grupos de indivíduos (com idades entre os 6 e os 13 anos e entre os 18 e os 75). Os participantes eram colocados diante de um computador para, ao longo de 10 minutos, clicarem nos corações e dólares que surgiam no ecrã, entre outros símbolos. Os computadores permitiam também que acedessem a outras três tarefas. Foi dito aos participantes que o objetivo era medir as suas capacidades cognitivas, através do seu desempenho na primeira tarefa, mas que eram livres de aceder às restantes. Em média permaneceram na tarefa principal 4 minutos e 22 segundos antes de começarem a mudar. Apenas 12% das crianças e 29% dos adultos nunca mudaram de tarefa (os adultos com idades mais avançadas foram os que permaneceram mais sem mudar). 20% das crianças começou a mudar logo no primeiro minuto, 49% no segundo, valores que nos adultos subiram, respetivamente, para 13% e 32%. É bastante significativo que, apesar de terem passado grande parte do tempo nas tarefas secundárias, a maioria das crianças declarou que gostaram mais da principal.
Crianças, adolescentes e jovens adultos surgem como mais vulneráveis ao apelo dos múltiplos media, por as suas capacidades cognitivas e socioemocionais ainda estarem a desenvolver-se. Esta vulnerabilidade é especialmente acentuada até aos primeiros anos da adolescência, pois até a essa idade ainda não desenvolveram a capacidade do controlo da atenção.
A fuga ao tédio e o apelo de gratificações imediatas (como a expectativa de obtenção de likes nas redes sociais) são fatores associados ao PIMTM. As autoras desta última investigação consideram que os adultos com dificuldades de concentração podem já ter desenvolvido estratégias para lidar com isso, enquanto os mais novos ainda não possuem essa capacidade.
Preocupada com o impacto da PIMTM na adolescência e com o seu eventual agravamento continuo, Baumgartner está por detrás de outros dois estudos, longitudinais, centrados na observação de mais de 2 mil adolescentes, com idades compreendidas entre os 11 e os 16 anos. Estes indivíduos foram observados várias vezes, com intervalos de 3 e 6 meses. Um dos objetivos foi tentar apurar se se confirmava o Modelo Espiral de Reinforço (MER), que pressupunha que as dificuldades de concentração não eram nem uma causa, nem uma consequência do PIMTM, mas ambas, desenvolvendo-se uma relação de reinforço reciproco continuo. Ou seja, a PIMTM poderia acentuar os iniciais problemas de concentração (e criar uma habituação aos altos níveis de excitação associados a esta prática), aumentando as dificuldades em filtrar informações irrelevantes, deteriorando os processos de controlo da atenção. O aumento dos problemas de concentração levariam depois ao aumento da PIMTM e assim sucessivamente.
No geral, os dados não confirmaram o receio de que a PIMTM se acentue ao longo do tempo. Os resultados dos testes efetuados foram piorando apenas para os mais novos (aqueles que se encontravam na fase inicial da adolescência) e que na sua vida quotidiana tinham uma PIMTM. O MER só surgiu como particularmente acentuado para alguns e não infinitamente, devendo existir fatores que travam a espiral.
Isto aponta também no sentido da PIMTM ser uma consequência das menores capacidades de concentração e não a sua causa. Os investigadores ressalvam no entanto, que eventualmente posteriores investigações podem descobrir que os problemas de concentração se refletem no PIMTM de uma forma mais imediata, num intervalo de tempo mais curto, do que o inverso, mantendo-se nesse caso a relação recíproca do modelo espiral, mas de forma assimétrica.
Os diferentes tipos de media e de tarefas que executamos têm diferentes características, graus de exigência cognitiva, bem como diferentes gratificações. À partida, os indivíduos tenderiam a executar em simultâneo tarefas que, devido ao seu grau de exigências ou características, fossem mais facilmente conjugáveis.
Publicado no último mês de fevereiro, "Not all media multitasking is the same: the frequency of media multitasking depends on cognitive and affective characteristics of media combinations" ("Nem todas as multitarefas de media são iguais: a frequência das multitarefas de media dependem das características cognitivas e afetivas das combinações de media") - é um artigo (também contando com a participação de Baumgnater) que nos mostra que nem sempre esta premissa se verifica. Os investigadores notam que, por vezes, a exigência cognitiva não fala mais alto e que a expectativa de gratificação instantânea pode prevalecer. "Esta descoberta é importante pois sugere que a seleção das multitarefas de media nem sempre segue um padrão adaptativo, numa perspetiva puramente cognitiva", e essa situação pode levar a um "overload problemático" com um "insuficiente processamento da mensagem" e "respostas de stress".
Vários investigadores têm frisado que os dados científicos não têm dado sustentação às teorias mais alarmistas sobre o impacto da Internet e das novas tecnologia digitais. A habituação a níveis mais elevados de excitação e às gratificações imediatas, associadas à PIMTM, surge contudo, como especialmente problemática, capaz de levar indivíduos com características específicas, a mais facilmente perderem a sua capacidade adaptativa.
O vício da Internet é um problema crescente, que já foi integrado na lista da DSM - a referência médica internacional em termos de distúrbios mentais.
Aqueles com hiperatividade e défice de atenção surgem entre os mais vulneráveis, assim como as crianças e adolescentes no geral. A PIMTM pode perturbar o desenvolvimento dos processos de controlo da atenção.
Os encarregados de educação podem ter um contributo chave de auxílio nesta aprendizagem junto dos mais novos, explicando-lhes as implicações da PIMTM e ajudando-os a lidaram com isso. Por exemplo, levando-os a separar o tempo de estudo do tempo dedicado aos media, o que poderá passar por, quando têm que trabalhar num computador, bloquearem temporariamente outro tipo de conteúdos nestes dispositivos.
Este artigo foi realizado com uma Bolsa de Jornalismo atribuída pelo Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche.