O que têm em comum Lula da Silva e o seu algoz judicial Sérgio Moro? E no que concordam Dilma Rousseff e o subscritor do seu próprio impeachment Miguel Reale Júnior? Todos, como uma fatia considerável dos eleitores do Brasil, a julgar pelas sondagens, querem de uma forma de outra o fim do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Mas é possível unir um grupo tão heterogéneo de pessoas e com feridas aparentemente tão insanáveis a separá-los? Os movimentos "Estamos Juntos", "Somos 70%" e "Basta!", todos nascidos nas últimas semanas, acreditam que sim..O "Estamos Juntos" começou num grupo de Whatsapp - ironicamente a mesma ferramenta digital utilizada para divulgar o bolsonarismo desde a pré-campanha eleitoral de 2018 - e pretende recriar o espírito do "Diretas Já!", movimento apartidário de 1983 que pedia a realização de eleições democráticas no país então sob ditadura militar.."A onda de esperança se formou: somos muitos e diferentes, e estamos juntos", escreveu em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo a argumentista Carolina Kotscho, uma das fundadoras do grupo. "Estamos vivendo uma tragédia sem precedentes e agora estamos finalmente juntos, com tudo o que temos de mais humano e sincero. Como no movimento "Diretas Já", temos que deixar velhas disputas para criarmos condições de enfrentar e superar o drama atual", conclui..O grupo, já com perto de 300 mil assinaturas, prega a defesa da vida, da liberdade e da democracia e foi assinado por artistas, intelectuais e políticos de diferentes campos ideológicos..O "Somos 70%" partiu de uma iniciativa virtual do ex-banqueiro e hoje economista ligado às classes mais desfavorecidas Eduardo Moreira. O nome deriva das sondagens que atribuem só cerca de 30% de aprovação a Bolsonaro.."70% acham Bolsonaro péssimo, ruim ou regular, 70% rejeitam a aproximação ao Centrão [grupo de partidos assumidamente oportunistas do Congresso Nacional], 70% apoiam medidas de isolamento e mais de 70% sabem que a terra é redonda, #somos70%", notou Moreira.."O curioso é que agimos como se fossemos minoria e eles agem como maioria. Falam, gritam, colocam medo em todo o mundo. Mas somos maioria, quem tem que ter medo são eles", concluiu..O grupo ganhou também a simpatia de políticos de quadrantes variados e de celebridades, como a apresentadora Xuxa, sem histórico de participação política..Além de mais um punhado de grupos - "Pacto pela Democracia", que reúne 150 entidades da sociedade civil, como ONGs ou grupos ambientalistas, "Esporte Pela Democracia", lançado por ex-atletas como os antigos futebolistas Casagrande, com passagem pelo FC Porto nos anos 80, e Raí ou o ex-tenista Gustavo Kuerten - surge com força o "Basta!", com origem na comunidade jurídica brasileira..Ao lado de Reale Junior, autor do impeachment de Dilma, um dos nomes que encabeça um movimento com cerca de 50 mil assinaturas e que exige "respeito à Constituição e às instituições" é Antonio Mariz de Oliveira, advogado do ex-presidente Michel Temer durante as denúncias de que o ex-presidente foi alvo no exercício do cargo..No jornal O Estado de S. Paulo, Mariz de Oliveira fala em "ataques", "agressões" e "afrontas" de Bolsonaro às instituições. "Há risco de rutura institucional e rutura social", diagnostica, e, por isso, defende, "não é possível continuar omisso, porque a omissão acaba sendo cumplicidade"..Lula cético.O objetivo dos grupos de agregar o maior número de pessoas independentemente dos credos políticos ou das posições tomadas no passado pelos seus integrantes, entretanto, vem enfrentando resistências importantes. Desde logo de Lula, principal referência da esquerda brasileira, e do Partido dos Trabalhadores (PT), a maior força parlamentar do Brasil.."Nós precisamos assinar qualquer manifesto que seja para resolver o problema do Brasil mas não podemos ser levados pela euforia (...) já não tenho idade para ser uma "Maria vai com as outras"", disse o antigo presidente. "Li os manifestos e têm pouca coisa do interesse da classe trabalhadora, não se fala nela, nem nos direitos perdidos", afirmou, em reunião ao vivo com membros do seu partido.."Há alguns feitos com boa intenção e assinados por gente muito boa mas também há aqueles que estão fugindo do barco", continuou. "Eu sinceramente não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas (...) até o Fernando Henrique [Cardoso], que ajudou a tirar a Dilma porque se acovardou, assinou"..O jornalista Juca Kfouri, entusiasta signatário do "Estamos Juntos", também criou um limite a uma iniciativa que se pretendia ilimitada. "Entrarão todos menos os fascistas, Moro está fora, ele é o limite"..No "Basta!", que reúne muitos advogados críticos dos métodos da Operação Lava Jato, o ex-ministro da justiça também é visto com desconfiança: "É natural que exista constrangimento com a adesão de algumas pessoas que são responsáveis diretas por parte importante das mazelas do país", disse o advogado Marco Aurélio Carvalho à coluna Painel do jornal Folha de São Paulo..Já Eduardo Moreira, que em recente entrevista ao DN defendia, a propósito de uma união das esquerdas, "a coordenação de todos mas não necessariamente a união numa só candidatura", sublinhou que no seu grupo "não existem nem listas nem vetos"..Direita à espera.Moro, visto com desconfiança pela esquerda, é no entanto a figura que une boa parte da "direita não bolsonarista" - sobretudo depois de se ter demitido e de engrossar o grupo dos "arrependidos", como os deputados federais Alexandre Frota, signatário do "Estamos Juntos", ou Joice Hasselmann, que aderiu ao "Somos 70%"..Também por isso parte dessa direita torce o nariz aos movimentos. "Não vou assinar porque estou a achar essa movimentação precipitada e desproporcional", disse Janaína Paschoal, que redigiu o impeachment de Dilma ao lado de Reale Júnior, foi eleita deputada estadual pelo partido de Bolsonaro mas já rompeu com o governo..Em conversa com o jornal Folha de S. Paulo, João Amoêdo, candidato à presidência em 2018 pelo Partido Novo, que prega o liberalismo, achou os documentos "demasiado genéricos"..Já João Doria, governador de São Paulo em rota de colisão com Bolsonaro e a ensaiar candidatura em 2022, e Geraldo Alckmin, derrotado nas presidenciais de 2006 e 2018, ambos do PSDB mas de alas diferentes, declararam apoiar sem restrições as iniciativas. O primeiro diz não ter assinado apenas por exercer cargo público, o segundo por não ter sido ainda convidado..Terroristas, acusa presidente.E o visado? Bolsonaro não comentou os movimentos nas redes contra si. Mas pronunciou-se sobre as primeiras manifestações nas ruas, comandadas pelos "antifas", grupo internacionalizado contrário ao extremismo de direita.."São marginais, terroristas, no meu entender", disse em conversa com apoiantes. Pelo Twitter completou: "Quem promove o caos, queima a bandeira nacional e usa da violência como forma de protestar é terrorista sim, manifestante, contra ou a favor do governo, é outra coisa".