"Estamos a viver a IV Guerra Mundial"
Claudio Magris gosta de visitar Portugal, mas há duas semanas quanto, esteve no Festival Literatura em Viagem (LEV), descobriu a versão tinta do vinho verde e ainda ficou a gostar mais. O autor do celebrado Danúbio, comentou essa descoberta com o mesmo à-vontade com que fala da sua paixão por um Estado verdadeiramente europeu, a crise politica e os conflitos bélicos em curso. Aliás, neste caso, faz questão de afirmar que "já estamos na IV Guerra Mundial", nada que não seja sustentado na investigação feita para o seu mais recente romance: Uma Causa Improcedente. Onde a vontade verídica de um cidadão de Trieste para fazer um Museu da Guerra serve para mostrar ao mundo os horrores desta prática ao longo da História.
Um romance longo mas de pequenos capítulos na maioria, que prendem o leitor logo a partir de um anúncio de jornal, em que se lia: "Submarinos usados - compro e vendo". E o protagonista que divide a narrativa com a curadora do futuro museu, Luísa, necessitava de um submersível para colocar a par dos tanques, armas, minas, e tudo o mais que um museu da guerra deve ter para exibir aos visitantes a ferocidade entre os exércitos. Só que, há um conjunto de diários onde são reveladas histórias sobre o que aconteceu no único campo de concentração italiano durante a II Guerra Mundial, e um misterioso incêndio provoca a morte do dono do museu. Mais não se revela, porque este é dos romances a ler urgentemente.
Magris é um entrevistado que desenvolve as perguntas durante bastante tempo, como que querendo esgotar a resposta até ao osso. Uma característica que faz questão de realçar quando refere o escritor António Lobo Antunes: "Encontrei-o algumas vezes... Ele é monossilábico e nunca se conversa muito com ele." Também não deixa de recordar a sua relação com José Saramago, com quem esteve várias vezes: "Conheci-o muito bem e não esqueço como me "interrogou" de um modo interessante no lançamento de um livro meu sobre o papel do narrador.
Antes de se começar, comenta-se a capa da edição portuguesa. De que gosta porque não esquece a personagem Luísa: "Ela tem a guerra nas nas mãos, bastante diferente da capa italiana, com um homem a mergulhar para o abismo. Um bom mote para dar início à conversa.
Este seu livro é sobre o mergulho da humanidade para o abismo da guerra. Foi difícil escrevê-lo?
É um romance que me deu um trabalho de investigação gigantesco porque tudo o que lá está tem correspondência com a realidade. Sejam as armas, os insetos, a descrição do forno crematório de Risiera de San Sabba. Ou seja, pego no ideal do protagonista que amava a paz e vou por aí adiante.
É uma história verdadeira?
Sim, mas tal como Tourgueniev dizia, se não se tivesse encontrado com uma certa pessoa o protagonista Bazarov nunca teria existido. Esta é a história de um homem que consagra toda a vida ao sonho de um museu da guerra em defesa da paz, mesmo que tenha um lado maníaco e obcecado pela guerra. Morre num incêndio talvez criminoso, de razão que se desconhece.
No livro faz uma sugestão...
Digo que os prisioneiros do forno crematório escreviam nas paredes das celas os nomes dos carrascos. Talvez um destes, que após o fim da guerra não queria pagar pelas suas atitudes, seja culpado. As paredes foram, no entanto, caiadas após a guerra, mas havia uns cadernos de notas onde eram denunciados. É um tema bem romanesco este da procura dessas pessoas que eram tão cúmplices como inocentes.
É possível haver cúmplices inocentes na II Guerra Mundial?
Não os podemos acusar nem excluir, essa é a premissa com que trabalhei. A outra personagem, a feminina, vai ajudar a contar a história dessas pessoas como se estivéssemos no livro das Mil e Uma Noites de Xerazade. Uma mulher que tem também uma história de perseguição muito grande devido à sua raça, situação perfeita para se ver como o Homem passa os séculos a apagar acontecimentos que não lhe interessam.
Nunca desconfiou do alegado pacifismo do seu protagonista?
Não tenho interesse em saber essa a realidade porque não é uma biografia. O que quero é mostrar que tem um grande amor pela paz e acredita que pode eliminar a morte na guerra e acabar com o fascínio da manutenção dos conflitos.
Não é um antagonismo, quando vivemos um tempo de fascinação perante as guerras em curso?
Sim, mas pode não ser uma fascinação, mesmo que estejamos perante um grande tempo de guerra. Considero que já ultrapassámos a III Guerra Mundial e que estamos a viver a quarta. Há guerra por todo o lado, mas a grande questão é desconhecermos quem está contra quem. Por exemplo, Bashar al-Assad [presidente da Síria] é um aliado ou um inimigo do Ocidente? É terrível este tempo porque vemos a guerra como uma epidemia e não conhecemos os inimigos que transportam o vírus da guerra.
Como os políticos europeus a ver a guerra ao lado e nada fazerem?
Nada se faz porque representamos o papel de que não há guerra. Teoricamente, estamos no período de paz, o que foi declarado após o fim da II Guerra Mundial, porque as intervenções não são militares mas de forças policiais. A par, há medo devido à inexistência de uma política que não seja ambígua. Infelizmente, o único governante que faz um caminho claro é Putin. Tem um projeto, não se sabe bem qual, enquanto os outros hesitam.
Pode dizer-se que os europeus não acreditam já no projeto europeu?
Eu sou um patriota europeu, que sonha pelo momento em que a Europa será um único Estado e os autuais países serão regiões.
Acredita nisso ainda?
Sim, mesmo que para os problemas europeus o que exista é uma política cética, com a qual não iremos a lado algum. Veja-se o problema da imigração em Itália, que no início era considerado pelas autoridades apenas um problema da Sicília. Isso não pode acontecer.
Escreveu A História Não Acabou. Como define o atual momento?
A História continua a acontecer de um modo incrível, ao contrário do que dizia Fukuyama, desde o fim da União Soviética e da queda do Muro de Berlim. A História que esteve por um período congelada descongelou para um período fragmentado, que sugere um novo início. Convivemos com muitas histórias, das quais desconhecemos ainda a direção. Como é a tentativa da Catalunha em ser independente, bem como da Grã-Bretanha querer sair da União Europeia ao mesmo tempo que a Turquia quer entrar.
Foi o 11 de Setembro que deu início a esta nova idade da História?
Não se sabe ainda, pelo menos mudou o pensamento devido à guerra que se seguiu no Afeganistão. Onde não se sabe quem são os vencedores e os vencidos mesmo que já tenham passado quinze anos, o que é incompreensível quando comparado com os cinco anos que durou a II Guerra Mundial. Nem há informação, o que contrasta com os relatos de Kipling de há cem anos sobre a outra guerra no Afeganistão, que davam uma visão muito mais clara que a de hoje. Há demasiada informação atualmente para percebermos o que está mesmo a acontecer. Falta a síntese e verifica-se a tendência para a repetição das notícias, o que faz perder a lógica do que é importante e altera a perceção da realidade. Como se a sociedade liquidasse a importância, mesmo que falsa, dos acontecimentos.
A partir deste seu romance, pode dizer-se que os escritores são superficiais na sua maior parte?
Não se pode comparar os escritores com os intelectuais, pois mesmo os importantes nunca deram certezas sobre se estão a compreender o que se passa. É o caso da maior parte dos grandes autores do século XX: foram fascistas, nazistas ou estalinistas e, mesmo assim, gostamos muito deles. Percebemos que quando Pirandello manda um telegrama de solidariedade a Mussolini pela morte de Matteotti, a porteira do seu prédio percebia mais de política que ele. O espírito crítico nem sempre existe nos escritores e o fio vermelho entre a realidade e a representação literária da história foi sempre confundida. "Um romance é História e a História é romance", diz Norman Mailer e creio que os escritores não podem usar o mesmo registo num romance e num escrito político. Como era o caso de Vítor Hugo e dos textos contra Napoleão. Nem se pode a utilizar A Metamorfose de Kafka como registo para escritos políticos. O problema da literatura é a existência dessa confusão e é preciso ultrapassar o abismo da realidade. É o que falta à literatura.
Foi-lhe difícil encontrar o registo?
Quando se começa um livro não se sabe qual o seu registo, só após encaixar a voz no ritmo e na música da narrativa. Daí resulta a harmonia ou desarmonia do romance.
Continua a escrever porque acha que há um papel para a literatura?
O escritor é outra coisa e não deve estar preocupado com tal papel. Deve estar imerso na capacidade ou incapacidade de ver e de manter uma distância crítica. A literatura, seja em livros com mil anos ou uma semana, deve ser a compreensão da vida.
Pode-se, então, continuar a ler hoje os livros de há 40 anos?
Com certeza, porque os grandes livros são os que cada geração volta a ler, mesmo que de uma maneira diferente e nova.
É sempre perseguido pelo seu livro Danúbio...
Perseguido não, é um livro que faz parte da minha vida e que tem um grande significado. Talvez tenha sido o último que escrevi com uma determinada ingenuidade e sem desconfiança. Era um tempo de felicidade.
Os últimos vencedores do Nobel não são inferiores aos de antes?
Sempre foi assim. Há escritores fabulosos que não o receberam: Kafka, Proust, Musil ou Fernando Pessoa, entre outros. É como em todos os prémios.