Espantosamente Trump

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Ouvi dois discursos nos últimos dias que me sobressaltaram. Não deveriam sobressaltar, porque eram palavras esperadas por todos. Mas a verdade é que me tocaram num nervo qualquer que eu não sentia vivo há muito tempo. Há tanto que eu já não me lembrava sequer de que este nervo existia e que é importante exercitá-lo, como se faz para manter o tónus muscular, como se deve fazer para evitar o amolecimento prematuro das sinapses. Este sobressalto democrático aconteceu--me no meio de um (outro) dilúvio de emoções nacionais despertado pela morte de Mário Soares, quando o país inteiro - os bons, os maus e até os péssimos - se juntou para honrar o pai da nossa democracia.

Talvez seja pequenino da minha parte, redutor e até canhestro perante a relevância do momento, mas por estes dias ouvi tanta gente encher a boca de elogios à frontalidade e à coragem de Mário Soares, apesar de essas mesmas pessoas, nas suas vidas e ocupações, no seu dia-a-dia, fazerem exatamente o contrário. Elas enrolam e iludem. Protegem-se... expondo os outros. Não decidem nada. Não enfrentam ou confrontam ninguém. Não têm um pensamento original. Fazem apenas o interminável jogo de interesses que lhes garante o usufruto das sinecuras de que desfrutam.

Não promovem a mudança, não asseguram a evolução e a melhoria. Não corrigem o erro ou a injustiça. Não se inquietam, não arriscam um milímetro, apenas adiam, e com isso desmoralizam o talento e o esforço dos outros. Foi contra isso que Mário Soares tantas vezes lutou: ele expôs os canalhas e deu-lhes luta, mordeu-os, chateou-os, mesmo quando estava por baixo na refrega. Mesmo quando a vitória parecia - e tantas vezes se revelou - impossível.

Não foi, portanto, a propósito de Mário Soares que eu me sobressaltei. Talvez o funeral me tenha predisposto a isso, a valorizar um pouco mais a democracia e o que ela nos oferece de bandeja. Seja como for, dei por mim espantado outra vez com a inteligência de Obama e a sua invulgar profundidade política. E depois, inacreditavelmente, espantosamente, milagrosamente, aconteceu-me uma coisa parecida com Trump, caricatura não sei bem do quê, com riscos que não sei bem quais são - posso apenas especular e temer -, mas que, também ele, se mostrou capaz de reconhecer o ar do tempo e cumpriu o que lhe era pedido.

Não quero aqui analisar o conteúdo dos discursos que os dois fizeram ontem e na terça-feira - o de Obama, estupendo; o de Trump, embora sanguíneo, talvez genuíno, um pouco confuso. Quero, sim, destacar uma rotina democrática importante que ambos valorizaram: o dever de prestar contas, responder às perguntas sem filtros ou desculpas, no momento adequado, não depois, quando fosse mais conveniente para os próprios.

[[citacao:E depois, inacreditavelmente, aconteceu-me uma coisa parecida com Trump. Também ele se mostrou capaz de reconhecer o ar do tempo e cumpriu o que lhe era pedido]

Nos últimos meses, o ainda presidente americano tem feito esse exercício a propósito de todos os assuntos, fracassos incluídos, e tem pontuado essa abertura com discursos que densificam e clarificam o seu pensamento político. Não me lembro de um único político português que o tenha feito assim, exceto, claro, Mário Soares, que tem mais dezenas de livros escritos e centenas de entrevistas em que dissecou o que fez e porque o fez. Todos os outros evitaram este desgastante confronto permanente com a história e consigo próprios.

Desconheço qual será a prática de Donald Trump daqui para a frente, mas pelo que vi ontem, naquela imensa e longa conferência de imprensa que ele deu, recheada de deselegâncias diplomáticas - ou talvez não, talvez tiros bem dados, é o que veremos -, fico com a ideia de que até ele aceita (agora, finalmente) a regra básica de se justificar com algum detalhe. Talvez tenha compreendido um pouco melhor a dimensão do lugar que ocupa e a exigência máxima a que será sujeito.

Mário Soares diria que estou a ser ingénuo, que de um tipo como Trump só pode esperar-se a perfídia. É provável que sim, mas até os maiores sacripantas às vezes nos conseguem espantar. Ontem, isso aconteceu-me.

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