Escreveu para a infância, foi assombrado pela guerra. Kipling nasceu há 150 anos

Atacado pelas suas posições imperialistas e belicosas, o autor de <em>O Livro da Selva</em>, primeiro escritor inglês galardoado com o Nobel, foi também aquele que ensinou um filho a tornar-se homem
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O primeiro britânico a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1907, nasceu em Mumbai, Índia, e faria hoje 150 anos. Viveu lá seis anos. Teve uma ama portuguesa, "católica, que rezava numa cruz à beira da estrada - comigo ao lado dela", escreve Rudyard Kipling na sua autobiografia, Something of Myself, publicada postumamente.

Ele, que morreu em 1936, foi um dos maiores e mais controversos escritores do Reino Unido. George Orwell (1903-1950), num ensaio que lhe dedica, chama-lhe um "jingo [patriota inglês belicoso] imperialista, moralmente insensível e esteticamente repugnante". E Kipling terá sido um "jingo imperialista", militarista, propagandista do colonialismo que apoiou a guerra dos Boers e não acreditava na autodeterminação dos indianos.

O homem das contradições

Mas também foi o homem que, com ternura, ensinou um filho a tornar-se um homem, no poema "If" (em português "Carta a um filho", escrito em 1895). A "arriscar numa única parada tudo quanto ganhaste em toda a tua vida" e, "ao perder", saber, "resignado, tornar ao ponto de partida". Ensinou a dar "ao minuto fatal todo valor e brilho", afirmando que, então, "és um Homem, meu filho!"

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O "jingo" foi o homem que escreveu o primeiro e o segundo The Jungle Book (O Livro da Selva, 1894 e 1895), com as suas histórias ligadas por pequenos poemas. Com Mowgli, o rapaz criado por uma família de lobos e salvo pelo urso Baloo ou pela pantera Bagheera de Shere Khan, o tigre, ou com um rapaz esquimó que atravessa o Ártico guiado pelo espírito animal Quiquern, muitas crianças, assim introduzidas à moralidade da "lei da selva" e fora dela, terão aprendido algo sobre este mundo. Ainda que, como nos livros de J.M. Barrie ou Lewis Carroll, a compreensão clara disso só muito mais tarde apareça e ainda que essa compreensão possa ser dura. Walt Disney, aliás, rejeitou seguir o texto de Kipling na adaptação de O Livro da Selva para o cinema de animação por ser demasiado negro.

E era negro, talvez mais do que as cores que tem. Mas elas estão lá. Afinal, como escreveu G.K. Chesterton no seu Heretics (1905), a maior qualidade de Rudyard Kipling seria ter visto que "onde está a mais imunda das coisas também está a mais pura. Acima de tudo, ele tinha algo a dizer, uma visão definitiva das coisas, e isso significa sempre que um homem é temerário".

O propagandista do colonialismo também foi aquele que escreveu o poema "Gunga Din", o nome do indiano que é "um homem melhor" do que o soldado branco que escreve. Ou "We and they", que mostra que a permuta entre o ponto de vista do "nós" e de "eles" está a uma travessia de distância.

A perda de dois filhos

Tanto "If" como O Livro da Selva foram dedicados aos dois filhos de Kipling que acabaram por morrer. "Este livro pertence a Josephine Kipling para quem foi escrito pelo seu pai", lia-se numa nota encontrada num dos exemplares da primeira edição de O Livro da Selva. A rapariga morreria cinco anos depois, tinha 6, de pneumonia.

27 de setembro de 1915. Batalha de Loos, Norte de França, durante a Primeira Guerra Mundial. John, soldado e filho do escritor, desaparecia. Tinha o nome do avô, John Lock-wood Kipling, que ilustrou a primeira edição de O Livro da Selva. Kipling e a sua mulher Caroline fizeram quanto puderam para o encontrar. "My Boy Jack" é o poema dessa pergunta, em que a resposta vem num cíclico "Não com este vento a soprar, e com esta maré."

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A obra e a vida do autor de Kim ou de Just So Stories são então atravessadas pela guerra. Visitava os feridos, colaborava com a Cruz Vermelha, foi bastante ativo dentro da Commonwealth War Graves Commission - responsável pela identificação e pelo enterro dos soldados. Foi ele quem escolheu o epitáfio bíblico, retirado do livro de Ben Sirá, que ainda hoje figura em muitas lápides dos cemitérios britânicos: "Their Name Liveth For Evermore" ("O seu nome vive de geração e geração", em português).

Descrevendo a miséria dos soldados, escreveu no poema "Tommy" que "Homens solteiros em quartéis não se tornam santos engessados". A sua obra Barrack-Room Ballads vendeu 29 mil cópias em 1915. Soldados levavam-no consigo para as frentes de batalha. Kipling enaltecia-lhes a coragem.

Em "Epitaphs of War", porém, lê-se: "Se houver perguntas sobre por que morremos,/ Digam-lhes que foi porque os nossos pais mentiram." E não podemos deixar de pensar no seu filho Jack. Orwell chamou a Kipling "bom mau poeta", escrevendo que "um bom mau poema é um monumento gracioso ao óbvio", que mostra "uma emoção que quase qualquer humano pode partilhar".

Ainda em Heretics, Chesterton acusa-o de ser um "cosmopolita", uma espécie de turista do mundo, incapaz de se fixar. Seja no plano teórico ou geográfico - Kipling ainda voltou à Índia, onde foi jornalista, viveu nos EUA e fixou-se depois em Inglaterra - não sabemos por que se movia Kipling.

Podemos, todavia, dizer, como ele em The Finest Story in the World (A História mais Bonita do Mundo), "que esta nunca seria escrita."

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