Escrevas o que escreveres num muro, ninguém liga...

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Uma cidade também se lê no chão, nos seus muros e paredes. As rosas de Sarajevo, pintadas no chão para lembrarem alguns dos lugares de sangue, vão desaparecendo à medida que as primaveras pisam o caminho. O emblemático eléctrico número 3, com que atravesso a ex-Avenida dos Snipers, está todo pintado com um anúncio da rádio Mir (que significa paz). Há muito que já não se sintoniza a rádio Zid (que significa muro), a resistente janela que furou os vários muros do cerco.

Numa paragem não muito longe da ponte onde começou a Primeira Guerra Mundial, uma frase escrita num muro cola-se à janela do eléctrico: "Ne Zaboravite Srebrenicu" (Não esqueçam Srebrenica), logo a seguir escrita também em inglês, para que os turistas não façam só turismo.

Saio antes de o 3 contornar a biblioteca, que ainda não voltou a receber os livros que o cerco reduziu a cinzas.

Cada vez que se vem a Sarajevo, é urgente beber água na Sebilj, a fonte da zona velha (Bascarsija). Aquele beijo fresco é como que uma promessa, entre o visitante e a cidade, que vai, de certeza, haver um regresso.

Alma Pintol estava, por uns dias, de volta à cidade onde nasceu e viveu todas as 44 semanas do cerco ("lembro-me de quando passou o dia número mil. Tinha 12 anos"). Mesmo com os amigos, como Alma, qualquer conversa descarrila rapidamente para o Dr. Dabic, a última máscara de um Radovan Karadzic que fugiu da justiça muito mais do que as 44 semanas do cerco que liderou.

"O que irrita é que é tudo um jogo político, não é uma questão de justiça nem de consciências. A Sérvia fica sem o Kosovo, dá o Karadzic e conquista a União Europeia. A comunidade internacional sente a consciência culpada e tenta fazer agora o que não fez no devido tempo."

Esta forma de ler a semana traduz a sua e muitas outras almas cansadas: "Cada vez que há um pico destes, fica-se com a sensação de que esta história nunca vai acabar. Nós estamos afundados como pessoas. Seria bom apagar tudo isto da memória, mas por outro lado temos uma responsabilidade com as vítimas. Temos de continuar."

Passadas algumas horas, Alma regressaria a Itália, onde terminou recentemente um mestrado que a poderá levar a trabalhar com os crimes de guerra na antiga Jugoslávia . Quando pensa no possível futuro trabalho, fala mais com a razão do que com o coração: "Todos os tribunais criados a partir do TPI de Haia estão a conseguir alguma coisa. Devagar, mas estão. Pelo menos não deixam o ideal de justiça morrer completamente mesmo se essa justiça, de vez em quando, fecha um olho."

É com os dois olhos que leio um autocolante num outro muro de Sarajevo: "Olha para todas as pessoas aqui." Volto a passar pela primeira parede, "Remember Srebrenica!", e lembro-me também das "pequenas Srebrenicas e dos pequenos Karadzics" do resto da Bósnia- -Herzegovina, que quase nunca chegam aos muros e aos jornais mesmo se "o valor de cada ser humano é único" e "só as vítimas podem perdoar".

E Alma aponta para aquele grafito enorme desenhado numa parede onde já limparam as feridas das balas: "Escrevas o que escreveres num muro, as pessoas não ligam."

Alma liga, fala e estuda. Para que nem os muros guardem palavras invisíveis, nem os jornais sejam muros de papel.

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