Era uma vez no festival de Kusturica

O DN foi o único meio português a cobrir a celebração dos dez anos do festival de música e cinema de Emir Kusturica nas montanhas remotas da Sérvia. O renascido cineasta, que joga com sua chama de rock star, parece ter nascido para ser anfitrião de um festival em sua casa. Literalmente.
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Nas montanhas mais geladas da Sérvia, em pleno inverno, acontece o mais mítico festival de cinema e música, o Küstendorf, inventado há uma década por Emir Kusturica. Quem entra aqui numa pequena estância invernal composta de cabanas de madeira no meio de nada, na serra de Drvendrag, pensa que vai gelar. Neste ano as temperaturas atingiram 20 graus negativos mas ninguém congela, antes pelo contrário.

Cada convidado, à chegada, é "obrigado" a beber um shot do brandy local, a ser cumprimentado por Kusturica himself e a juntar-se a uma multidão de jovens músicos, cinéfilos, críticos, estudantes de cinema e vedetas. Todos comem no mesmo sítio, partilham as adoráveis cabanas de madeira e sentem-se sitiados neste paraíso de neve. Neste ano, a mistura incluiu Lav Diaz, o cineasta filipino que venceu o Leão de Ouro em Veneza no ano passado, Virgine Efira, a atriz mais badalada do cinema mainstream francês, que aqui veio apresentar o muito indie Victoria, de Justine Triet, e o cineasta de culto chinês Zhang Yang.

Nesta 10.ª edição houve uma celebração dos grandes momentos e era comum vermos fotos de visitas célebres como Monica Bellucci, Maradona ou Johnny Depp, que já veio ao festival por mais do que uma vez. VIP ou não, aqui não há regalias para ninguém (a não ser o helicóptero de Kusturica) - um festival anti- passadeira vermelha.

A edição de 2017 terminou nesta quinta-feira depois de quase uma semana onde o prato forte foram as tertúlias à mesa, os concertos de música do mundo e as curtas de jovens cineastas, criteriosamente escolhidas por Emir, a sua mulher e a filha. Um festival feito em casa? "Sim, um family affair, é sempre o melhor...", conta-nos o diretor do festival e continua: "Este é um festival deveras metafísico, uma chuva sem fronteiras que tenta ajudar os jovens artistas. O que mais me tem agradado desde há dez anos é perceber a variedade de jovens talentos que fazem um cinema incrível. Temos feito uma seleção boa e isso encoraja os jovens a entrar no mundo do cinema. Gosto desta ideia de estarmos sempre juntos a comer, a beber e a ver cinema."

Óbvio, muito se bebe no National Restaurant, a cantina e quartel general do festival, onde depois dos concertos da meia-noite todos ficam quase até de manhã em animadas celebrações sempre na presença do "professor" (é assim a alcunha de Kusturica nesta terra que adquiriu), todas as noites o mais fotografado em selfies e sempre o mais sorridente - parece que nasceu para ser anfitrião de um festival em sua casa, literalmente. Porque o hotel é todo seu e grande parte do ano é aqui que vive. Diz-se que o governo sérvio cedeu-lhe o terreno depois de ter filmado aqui em 2003 A Vida É Um Milagre.

Kusturica, que não abdica da sua outra face, o músico de rock, que quase todos os anos atua com a sua No Smoking Orchestra no palco do cinema que é igualmente sala de concertos. Na quarta-feira foi lá precisamente que atuaram os Che Sudaka, banda de Barcelona composta por músicos da América Latina, embora o prato forte da programação musical seja precisamente os sons vindos aqui dos Balcãs. Quem está atento ao panorama da world music sabe que não é coisa pouca juntar os Van Gogh, The NS Big Bang, Ana Popovic e Adam Sting.

"Depois de ganhar dinheiro com a música e com o cinema, decidi voltar a pôr o dinheiro na música e no cinema. Por isso, criei o festival, até porque não me imagino a viver só da hotelaria", reforça o anfitrião. O resort onde todos os convidados ficam é seu e tem um charme muito cinéfilo, com ruas chamadas Fellini, uma praça Abbas Kiarostami e música nos cafés e na rua que remetem para os seus próprios filmes. A sério, distraímo-nos e pensamos que estamos num filme seu, tal é a inundação de cançonetas, de sons de fanfarra. Porém, podemos também pensar em ego trip. Kusturic está a marimbar-se.

Na loja de souvenirs do festival o miniclube de vídeo só vende filmes da sua autoria. "O festival dá-me muito gozo", volta a lembrar ao mesmo tempo que conta ao DN que provavelmente o seu próximo filme é uma adaptação de um clássico russo e com Paulo Branco como produtor. "Atrai-me Portugal por vocês não terem o preconceito político." Ficamos ainda a saber que só terminará o seu documentário sobre o ex-presidente do Uruguai Mujica lá para setembro e que não é tão cedo que voltará às feridas da guerra da sua ex-Jugoslávia, isto numa altura que na Croácia lhe chamam fascista e que muitos se assustam pela sua mudança de religião - é agora ortodoxo.

A única presença portuguesa esteve a cargo da curta Ascensão, de Pedro Peralta, que já tinha estado em Cannes. "Há um ambiente muito familiar transversal a todo o festival e seus participantes. Isso reflete-se no contacto que se têm com outros profissionais ou com o público em geral. É um ambiente muito caloroso, informal", diz-nos o jovem realizador, outro convertido ao festival mais rock "n"roll do mundo.

A Kusturicaland, como muitos chamam a este canto gelado, ao longo do ano tem ainda um festival de música clássica, teatro e literatura. Kusturica ama estas montanhas.

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