Epidemias no grande ecrã: o cinema da nossa vulnerabilidade
Nas últimas semanas, o filme Contágio, de Steven Soderbergh, tem sido citado por alguns jornalistas americanos como um objeto de perturbante atualidade. Revelado no Festival de Veneza de 2011, nele se narra a saga de um coletivo de personagens (dos meios científico, jornalístico e policial) face à multiplicação de um vírus que gera uma pandemia. Dir-se-ia uma variação realista sobre um modelo típico das aventuras de super-heróis: a sobrevivência da raça humana está posta em causa, mas não há nenhuma personagem com superpoderes para enfrentar a ameaça...
O filme é tanto mais inquietante quanto se desenvolve a partir de elementos, ficcionais é certo, mas que não podemos deixar de reconhecer como constituintes do nosso mundo hipertecnológico. Assim, a pandemia, por definição, ignora as barreiras tradicionais, sejam elas geográficas ou simbólicas; ao mesmo tempo, com o seu habitual desencanto, Soderbergh mostra também como os meios de informação podem funcionar como poderosos fatores de... desinformação.
Curiosamente, algumas raízes temáticas de tal visão encontram-se na ficção científica da década de 1950, quando, explicita ou implicitamente, a ameaça do apocalipse nuclear se foi consolidando em paralelo com os jogos militares e políticos da Guerra Fria. Uma típica produção de série B, datada de 1956, com realização de Don Siegel, pode servir de esclarecedor exemplo. Foi, aliás, batizada com um contundente título português: A Terra em Perigo. De qualquer modo, o título original é bastante mais sugestivo: Invasion of the Body Snatchers, ou seja, qualquer coisa como A Invasão dos Ladrões de Cadáveres.
Não se trata da história de uma epidemia, pelo menos em termos médicos. De qualquer modo, podemos resumi-la como a história de uma agressão que funciona em termos epidémicos. Porquê? Porque A Terra em Perigo narra a invasão do nosso planeta por um exército alienígena que vai conquistando território através da criação de duplos dos seres humanos que foram previamente aniquilados.
O poder sugestivo do tema deu origem a duas versões, uma de 1978, outra de 1993, dirigidas, respetivamente, por Philip Kaufman e Abel Ferrara. Em qualquer caso, essa ideia de uma "ocupação" do corpo humano por uma entidade sem forma própria - isto é, suscetível de se reproduzir através de qualquer forma orgânica - marcou um clássico do cinema de terror de 1982, com assinatura de John Carpenter. Chama-se The Thing (assim mesmo: A Coisa) e conta a assombrada aventura de um grupo de investigadores de uma estação científica na Antártida que do gelo desenterram, literalmente, um ser capaz de adquirir todas as formas daqueles que vai matando e fazendo "renascer". Entre nós foi lançado como Veio do Outro Mundo.
O que liga todas estas histórias não é tanto o seu "tema", mas sim a sensação de vulnerabilidade da vida humana. E podemos acrescentar os mais variados exemplos de filmes que desenham cenários mais ou menos realistas de epidemias: desde o clássico A Ameaça de Andrómeda (1971), de Robert Wise, investigando o efeito da queda de um satélite numa pequena cidade, até produções mais recentes como 28 Dias Depois (2002), de Danny Boyle, sobre um vírus que atinge o Reino Unido, ou WWZ: Guerra Mundial (2013), de Marc Forster, encenando uma epidemia de zombies.
O mais básico determinismo "sociológico", ainda que por vezes muito simplista, ensina-nos que todas estas narrativas delirantes ou fantasistas remetem para vivências muito concretas de "outras" epidemias. Faz, por isso, sentido recordar que o cinema desempenhou um papel fundamental no conhecimento e no reconhecimento da sida, sendo inevitável relembrar esse filme notável que é Filadélfia (1993), de Jonathan Demme, com Tom Hanks.
Importa também não esquecer que, nesse campo, e muito longe das suas formas mais degradadas de "divertimento", o espaço televisivo desempenhou um papel determinante. Títulos como Um Gelo Súbito (1985), de John Erman, ou A Banda Continua a Tocar (1993), de Roger Spottiswoode, são telefilmes que funcionaram como objetos pioneiros na abordagem pública da sida - este último acabou mesmo por ser difundido nas salas de cinema de muitos países (incluindo Portugal).
Nas nossas sociedades cada vez mais marcadas pela integração de "adereços" tecnológicos no dia-a-dia dos cidadãos, a própria noção de epidemia adquiriu novos contornos temáticos e filosóficos. No limite, sentimos e pressentimos que as leis clássicas da identidade humana estão a ser objeto de novas formas de contágio. Poucos cineastas como David Cronenberg têm sabido expor as peripécias, e também os fantasmas, de tal processo. Lembremos Os Parasitas da Morte(1975), acompanhando o efeito de um vírus nos comportamentos sexuais de uma pequena comunidade urbana, ou eXistenZ (1999), sobre os jogos perversos da realidade virtual e a perda da própria noção de realidade. Esta é, talvez, uma nova forma de epidemia.