Entre-os-Rios/20 anos. Memória de uma ponte que se desfez e ceifou 59 vidas

A 4 de março de 2001, ruiu a ponte de Entre-os-rios. Um autocarro e três automóveis caíram ao rio Douro e 59 pessoas morreram.
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Naquela noite fria e chuvosa de 4 de março de 2001 uma ponte ruiu perto de Castelo de Paiva e atirou ao Douro um autocarro com 53 passageiros e três automóveis, com um total de seis viajantes. Ninguém sobreviveu.

Vinte anos após a tragédia de Entre-os-Rios, que colocou no mapa pelas piores razões um concelho encravado nos limites dos distritos do Porto, Aveiro e Viseu, ainda sobram expressões de incredulidade pelo que sucedeu.

"Ninguém, no pior dos seus pesadelos, poderia pensar que um dia pudesse acontecer uma coisa destas", observa o atual presidente da Câmara de Castelo de Paiva, Gonçalo Rocha.

Ao tempo com uns verdes 16 anos de idade, o autarca socialista recorda bem um facto "absolutamente surreal" que deixou um concelho e um país "completamente atónitos".

Na cadeira do poder em Castelo de Paiva estava, por essa altura, o social-democrata Paulo Teixeira, que morava perto da ponte e que, por isso, foi dos primeiros a chegar ao local.

Mas, confessa, só com o nascer do sol, na manhã de 5 de março, é que teve a real noção da dimensão da tragédia. E, dias depois, chorou no ombro do então Presidente da República, Jorge Sampaio, quando este visitou o local.

Muita água correu debaixo das duas pontes que viriam a substituir a colapsada, mas só agora, duas décadas após, Paulo Teixeira ensaia uma explicação para uma atitude que dividiu opiniões: "foi libertar de emoções que tinha dentro, umas pessoais, outras ligadas à gestão do concelho".

Diz o antigo autarca que quando, num turbilhão de emoções, se dirigiu a Jorge Sampaio, associando a sua deslocação ao concelho à morte de 59 pessoas, as lágrimas correram-lhe pela face.

"Não é fácil num momento de grande emoção, como o que eu estava a viver, dizer isto ao mais alto representante da nação portuguesa" acrescenta.

A queda da ponte mobilizou meios de busca nunca antes vistos no Douro e na costa atlântica, que culminaram em outubro seguinte com a retirada dos destroços do tabuleiro, permitiram recuperar apenas 23 dos 59 cadáveres.

O Estado atribuiu 50 mil euros a cada família enlutada e um adicional entre os 10 mil e os 20 mil euros para cada herdeiro, em função do seu grau de parentesco.

Inquéritos promovidos pelo Governo e pelo parlamento atribuíram o colapso da ponte a uma "conjugação de fatores", incluindo a extração de inertes a montante de Entre-os-Rios.

No plano político, o acidente provocou a imediata demissão do então ministro do Equipamento, Jorge Coelho, que produziu então uma declaração marcante, a de que "a culpa não pode morrer solteira".

Mas, no âmbito judicial, a culpa morreu mesmo solteira, já que mais de cinco anos depois da tragédia, em outubro de 2006, o Tribunal de Castelo de Paiva determinou a absolvição de quatro engenheiros da ex-Junta Autónoma de Estradas (JAE) e de outros dois de uma empresa projetista, que o Ministério Público responsabilizava pela queda da ponte.

Os seis técnicos estavam acusados dos crimes de negligência e violação das regras técnicas, mas o tribunal entendeu que na altura das inspeções realizadas pela ex-JAE à ponte não havia ainda regras técnicas que enquadrassem a atuação dos peritos.

"Facilmente se conclui que os arguidos não praticaram os crimes de que vinham acusados, impondo-se a sua absolvição", sentenciou o coletivo de juízes.

"Fica essa mágoa por não vermos ninguém responsabilizado criminalmente pela morte de 59 pessoas", afirma o atual presidente da Associação de Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios (AFVTE-R), Augusto Moreira.

"Condenados" a suportar um total de 57 mil euros de custas judiciais no processo iam sendo os 250 familiares assistentes no processo, mas o Estado acabou por cobrir a despesa através de um adicional indemnizatório equivalente.

O acidente, que deu origem uma cobertura mediática sem precedentes em Portugal, levou o Governo a lançar um programa de obras de emergência em Castelo de Paiva, no valor de 80 milhões de euros, incluindo a construção de duas novas pontes.

A memória das vítimas mortais ficou perpetuada num monumento junto ao local do acidente. O monumento, da autoria do arquiteto Henrique Coelho, representa o Anjo de Portugal e na base tem inscritos os nomes das 59 pessoas que morreram no colapso da ponte.

O autarca de Castelo de Paiva diz que há dinheiro para concluir, até 2026, os acessos rápidos do concelho ao litoral, prometidos há duas décadas após a queda da ponte de Entre-os-Rios.

O troço da variante à estrada nacional 222 (EN222) dentro dos limites do concelho está já a ser usado, mas a via rápida desemboca numa estreita e sinuosa estrada de montanha. Falta executar um lanço da variante de apenas 8,8 quilómetros, entre a fronteira de Castelo de Paiva, e o nó da autoestrada 32 (A32) em Canedo, Santas Maria da Feira.

A norte, o Itinerário Complementar 35 (IC35), que iria ligar Castelo de Paiva ao nó da autoestrada 4 (A4) em Penafiel, resume-se a uma ponte e um pequeno lanço de 800 metros para cada lado.

"É a mesma coisa que tivessem feito a ponte sem saída", critica Paulo Teixeira, que dirigia a Câmara de Castelo de Paiva na altura do colapso da ponte, em março de 2001.

O atual detentor do cargo autárquico, Gonçalo Rocha, concorda. Mas cobre com otimismo a impaciência de quem espera duas décadas pela promessa de acessos rápidos ao litoral, avançando mesmo com uma data para conclusão das ligações às autoestradas: 2026.

E assegura que o financiamento surgirá da chamada "bazuca" europeia.

Questionado sobre dúvidas e desconfianças de quem esperou duas décadas pelas obras, Gonçalo Rocha, confessa: "Eu próprio também sinto a impaciência do cidadão que quer ver as coisas da sua terra resolvidas e tratadas. Mas, para mim, a grande diferença, neste momento, é que temos o dinheiro, que era sempre a grande justificação, muitas vezes não assumida, para não se fazer o que era necessário".

"É coisa impensável ter um cheque à frente para essas duas obras e serem incapazes de as fazer", junta.

E deixa um pedido para que se aligeire a burocracia: "se não tivermos a obra concluída até 2026, perdemos o dinheiro".

Considerando que a máquina de contratação da Administração Pública é "extremamente pesada", pede que, sem deixar de se cumprir a lei, "se criem mecanismos nessa mesma lei que permitam uma celeridade muito maior".

A história das grandes obras em Castelo de Paiva nasce uma semana após a ponte ruir, num tempo em que o atual secretário-geral das Nações Unidas liderava o Governo de Portugal.

António Guterres deslocou-se a Castelo de Paiva, à missa de sétimo dia pelos 59 mortos, encontrou-se com Paulo Teixeira e pediu-lhe uma lista de obras prementes no concelho.

A lista, com 55 investimentos, entra no gabinete do primeiro-ministro dentro do prazo fixado, que era de horas.

Em pouco tempo, Castelo de Paiva vira um estaleiro, com a execução de um nunca antes imaginável pacote de obras de emergência, no valor de 80 milhões de euros, centrado sobretudo na rede viária e que, contas feitas agora por Paulo Teixeira, foi cumprido a 95%.

"No concelho ficou por fazer apenas a variante de Carreiros", recorda o antigo presidente social-democrata da Câmara.

O problema que subsiste, 20 anos após, é mesmo o das obras fora do concelho, mas por causa do concelho, que continuam apenas em projeto, sublinha Paulo Teixeira, numa alusão ao prolongamento da variante à EN222 e à extensão do IC35 até Penafiel.

Atualizado às 09:09

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