"Hoje é o dia de devolvermos a esperança ao povo brasileiro. Em respeito à Constituição, em respeito aos mais de 208 mil eleitores que me deram oportunidade de estar aqui, por São Paulo e pelo Brasil, voto "sim", que Deus abençoe o nosso país"..As frases acima são de Baleia Rossi, deputado pelo MDB, o partido, entre outros, do ex-presidente Michel Temer, ao votar em abril de 2016, emocionado, pela queda de Dilma Rousseff num controverso impeachment - ou num puro "golpe", como o classifica o Partido dos Trabalhadores (PT), de Dilma e também de Lula da Silva, o antigo presidente e líder espiritual do partido..Causa estranheza então que, menos de cinco anos depois, o PT, em peso, apoie Baleia na corrida a presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, terceira figura na hierarquia do estado, logo após presidente e vice-presidente da República, e dono da chave da gaveta onde estão guardados os 56 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro..Como se justifica que o esquerdista PT sustente alguém, de centro-direita, para quem devolver "a esperança ao povo brasileiro" passava por despedir Dilma do Palácio do Planalto e para quem aquele impeachment significava "respeitar a Constituição"?."Em Portugal, os socialistas não fizeram uma coligação para governar? Então, aqui é a mesma coisa, temos de fazer coligações para governar, neste caso, governar a Câmara dos Deputados, mesmo com quem temos divisões profundas", justificou ao DN o deputado José Guimarães, a propósito da tática "petista" para as eleições marcadas para 1 de fevereiro..Ao PT restava uma alternativa. Talvez duas. A primeira seria entrar no bloco de apoio ao outro candidato, o deputado Arthur Lira (PP), patrocinado por Bolsonaro, o presidente a quem Lula se refere como "miliciano" ou "coisa grotesca", entre outros epítetos. A segunda, lançar um nome do próprio PT, mas arriscando dividir os votos da oposição e facilitar a eleição de Lira.."E essa era a prioridade: a necessidade de derrotar o Arthur Lira, o candidato bolsonarista", prossegue Guimarães, deputado com 14 anos de parlamento. "O Bolsonaro já tem esse poder executivo todo para as maluquices dele, se tiver ainda o poder do legislativo nem queremos imaginar o que sucederia...".."Depois, foi estabelecido no acordo com Baleia a defesa intransigente da Constituição e isso significa tudo, isto é, que nenhum processo, de impeachment ou outro, será engavetado"..Rodrigo Maia, o atual presidente da Câmara dos Deputados, impedido por lei de se recandidatar ao terceiro mandato, e principal estratega da campanha de Baleia, sugeriu que esta aliança heterogénea possa ser o laboratório de uma união nas presidenciais de 2022. Isto é, todos juntos, da esquerda à direita moderada, em torno de um nome de oposição contra o extremismo do atual chefe de estado do Brasil.."Não, não tem nada a ver com 2022", assegura Guimarães. "Divergimos do grupo do Maia, que tem uma visão de economia oposta à nossa, e continuamos a achar que eles, os defensores do golpe, são os responsáveis por esse presidente que está aí e vamos manter que foi um golpe sim e que eles foram golpistas sim, mas, pelo menos, eles têm uma visão progressista nos costumes e um papel influente na história da nossa democracia, ao contrário do Bolsonaro"..Na teoria, com o apoio do PT, que detém, com mais de 50 deputados, o maior grupo parlamentar, Baleia Rossi está em vantagem. Os 11 partidos que lhe declararam apoio, somam 278 dos 513 deputados da Câmara. E bastam 257, a metade mais um, para ganhar. Mas, como o voto é secreto e a disciplina partidária volúvel, Arthur Lira, cujo apoio formal de nove partidos lhe confere 195 votos, acredita na matemática das traições.."Voto secreto dá uma vontade de trair", disse um dia Tancredo Neves, um dos mais experientes políticos de Brasília, falecido no intervalo entre a sua eleição como presidente e a tomada de posse, em 1985..Em campanha pelo Brasil, para conversar com cada um dos deputados nas suas sedes, Lira acredita poder desviar o voto de eleitores de muitos partidos, incluindo do PT e mesmo do MDB, de Baleia. A moeda do candidato de Bolsonaro é forte no mercado parlamentar: cargos apetitosos e fatias generosas do orçamento oferecidos pelo governo.."Por isso, nada está ganho, temos de calçar as sandálias da humildade e tentar vencer com diálogo, com trabalho", conclui José Guimarães ao DN..Lira ainda aposta no surgimento de candidaturas menores, nomeadamente do PSOL, de extrema-esquerda, para quem será difícil apoiar Baleia, ou do liberal Novo, crítico contumaz da "velha política"..E Baleia e Lira são, sem sombra de dúvidas, expoentes do que se convencionou chamar de "velha política"..O primeiro, de 48 anos, tem o perfil do político brasileiro típico: é empresário, rico e filho de outro político, o ex-ministro da agricultura Wagner Rossi, com histórico de casos de corrupção..Milita, desde o início da carreira, no MDB, o partido de oposição durante a ditadura militar, que em democracia se transformou num "partido autocarro", onde cabem todas as ideologias desde que isso lhes assegure a permanência no poder - o partido esteve em todos os governos até ao de Bolsonaro, mesmo sem jamais ter eleito um presidente..O segundo, de 51 anos, pertence a outra casta comum nos políticos brasileiros: é um abastado agropecuarista da região nordeste (do estado de Alagoas) habituado a trocar de partido - o PP, onde milita hoje, é o quinto da sua carreira..Também filho de político, o ex-senador Benedito de Lira, construiu, ele próprio, uma respeitável lista de escândalos: entre outros, em 2011, ainda na Assembleia Legislativa de Alagoas, foi acusado de pertencer a uma organização criminosa que fraudava impostos; em 2016, foi acusado, pelo procurador-geral da República, de "auferir vantagens indevidas de praticamente todas as formas observadas no esquema de corrupção e lavagem de dinheiro relacionado à Petrobras", no âmbito da Lava Jato, e condenado a devolver cerca de sete milhões de reais ao erário público..O candidato de Bolsonaro é considerado um dos líderes do "Centrão", o grupo de deputados de partidos sem ideologia definida que, ao jeito do que sempre fez o MDB, apoia o governo em exercício em troca de nacos do estado - um grupo que o atual presidente jurou combater uma vez eleito..As eleições para a câmara alta do Congresso, o Senado Federal, estão mais atrasadas e ainda mais confusas. Só do MDB, o partido de Temer, há quatro nomes possíveis, sendo que dois deles apoiam o governo e outros são oposição. Como na Câmara, também no Senado o PT deve abdicar de apresentar um nome para apoiar o centro-direita contra o candidato bolsonarista. Para já, Rodrigo Pacheco, do DEM, partido firme na oposição aos governos de Lula e Dilma, é dado como o escolhido pelo PT, por mais estranha que a aliança possa parecer. Ele é apoiado também pelo presidente cessante, David Alcolumbre, do mesmo DEM.