Encenando o mundo inimigo de livros
Na discussão em aberto sobre a continuada coexistência, eventualmente conflituosa, das produções de cinema e televisão, a passagem do filme americano Fahrenheit 451, de Ramin Bahrani, no recente Festival de Cannes (extra-competição), teve um curioso valor simbólico. Com chancela da HBO, aqui está, um reencontro com a herança de um nome grande da Nova Vaga francesa que, em 1966, realizou o seu Fahrenheit 451, também adaptado do romance clássico de Ray Bradbury sobre um mundo distópico em que passou a ser proibido ter livros. Dito de outro modo: a produção televisiva volta a interessar-se pelas possibilidades de reconversão e reinvenção do património literário e cinematográfico.
Conhecíamos Bahrani através de 99 Casas (2014), magnífico filme sobre as convulsões da compra e venda de imobiliário, tendo por pano de fundo a crise económica de 2008. Num registo inevitavelmente muito diferente, ligado à tradição da ficção científica, Bahrani tem o cuidado de preservar o núcleo da história original, em particular o drama do bombeiro Montag (Michael B. Jordan) que, embora profissionalmente obrigado a queimar livros (à temperatura de 451 graus Fahrenheit), sente um crescente fascínio pelas palavras escritas... Com a particularidade de, desta vez, tudo se passar num mundo dominado pela encenação televisiva do quotidiano: as fachadas espelhadas dos arranha-céus são mesmo utilizadas pelo governo como gigantescos ecrãs para dar conta das perseguições movidas contra quem arrisca conservar livros.
Marcado por meios de produção algo limitados, o novo Fahrenheit 451 não deixa de ser uma curiosa ilustração das relações de alguma televisão contemporânea com a pluralidade do património cinéfilo. Além do mais, seria interessante utilizar esta oportunidade para dar nova visibilidade ao belo filme de Truffaut, por certo um dos seus trabalhos mais esquecidos.