Só a empresa de um anestesista recebeu no ano passado quase 500 mil euros em prestações de serviços em hospitais públicos. Nos quatro contratos que assinou com o Centro Hospitalar do Médio Tejo chegou a ganhar 42,21 euros por hora, quando um especialista do Serviço Nacional de Saúde (SNS) no topo da carreira médica recebe no máximo 23 euros. Mesmo assim, há valores ainda mais altos a serem cobrados em situação de carência de anestesistas nos hospitais portugueses..Este está longe de ser caso único mas chama a atenção pelo número de horas que conseguiu acumular, numa altura em que a greve de uma semana no Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) vem alertar novamente para a falta de anestesistas no Serviço Nacional de Saúde: os hospitais públicos têm 541 anestesistas em falta, segundo os Censos de Anestesiologia de 2017..Neste caso, a empresa que está em nome de um médico anestesista, o mesmo que assina os contratos com os hospitais, tem documentos publicados no Portal Base desde 2012. Durante estes sete anos, recebeu no total mais de 1,5 milhões de euros (1 652 079,10 euros), de acordo com as informações disponíveis no site onde são publicados serviços adquiridos pelos hospitais do SNS. O DN tentou contactar o anestesista, mas não obteve resposta em tempo útil..Mas há contratos com outras empresas em que o preço por hora estipulado chega aos 50 euros. Quando o Despacho 3027/2018, publicado em Diário da República em março de 2018, estabelece que os médicos prestadores de serviços não especializados devem receber 22 euros e os especializados 26 euros. Excecionalmente e de forma temporária, estes valores podem atingir o máximo de 39 euros..O Ministério da Saúde garante ao DN que "o recurso ao pagamento de médicos em prestação de serviços tem sido uma opção em última instância, a que se tem recorrido para garantir a prestação de cuidados de saúde com qualidade a todos os portugueses". O ministério explica ainda que tem autorizado regimes especiais que permitem passar a barreira imposta pela lei "em zonas de reconhecida carência de recursos humanos"..Em dezembro do ano passado, a ministra da Saúde, Marta Temido, chegou mesmo a mostrar disponibilidade para pagar 500 euros à hora a um anestesista que assegurasse o serviço na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, durante o Natal. "Não tenho conhecimento de que esse valor [500 euros] tenha sido pago em lado algum. O valor mais elevado de que ouvi falar foi 100 euros. Isso sim, acredito que em situações muito críticas - no verão, no Algarve, que é uma zona muito carenciada, - valores como este poderão ter acontecido", refere Rosário Órfão, presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia.."Ganham mais dinheiro fora do SNS. Depois já não querem voltar".Ficam de fora nos concursos abertos pelo governo ou deixam o seu lugar no SNS e acabam muitas vezes por não voltar para o setor público. Até porque as propostas chegam sem ser preciso procurar. Rosário Órfão trabalha no Hospital Universitário de Coimbra e conta que recebe frequentemente convites - mesmo através do seu e-mail institucional, não do pessoal, faz questão de salientar - para prestar serviços noutros hospitais onde as horas são pagas por exemplo a 50 euros. "Todos nós recebemos propostas com valores mais elevados", diz.."Se os colegas ganham mais dinheiro fora do SNS depois já não querem voltar. Além de que no SNS há grandes centros hospitalares onde a quantidade de trabalho é enorme - o que significa trabalhar muito. E às vezes noutros sítios não se trabalha tanto", explica a presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia..Começou por ser uma exceção, mas agora quase todos os hospitais do país estão com falta de anestesistas. "Neste momento só há dois ou três hospitais que não têm carências e que são no Grande Porto", diz Rosário Órfão. Em 2017 (últimos dados disponíveis), foram contratadas pelo serviço público 184 118 horas para a especialidade de anestesiologia, o que significou um encargo para o Estado de 7 342 747 euros, segundo as contas da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS)..Olhando para o portal Base, dos vários hospitais que recorrem frequentemente à contratação de prestadores de serviços destacam-se três: o Centro Hospitalar do Médio Tejo, que gastou 842 449,9 euros, em 2018; o Centro Hospitalar Universitário do Algarve, que pagou no ano passado 616 507,76 euros e o Hospital Garcia de Orta, em Almada, com 108 528 euros gastos e queneste ano em cinco meses já atingiu praticamente este valor. Tendo a maioria dos contratos sido atribuídos a empresas constituídas por apenas uma pessoa/anestesista, como é possível perceber através das informações sobre os adjudicatários descritas no site..O DN enviou perguntas sobre as necessidades de contratação de serviços de anestesiologia para estes três hospitais, mas só obteve resposta do Garcia de Orta para dizer que a administração tomou posse há apenas três semanas e que por isso não se encontrava em condições de falar sobre estes números.."O governo prefere gastar 110 milhões de euros em prestadores de serviços do que modificar a grelha salarial".Dos 145 anestesistas que se formaram nos últimos três anos, 99 terão integrado o Serviço Nacional de Saúde, segundo os Censos. Para o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha, é preciso dar condições aos médicos para que estes preencham as vagas e tenham vontade de permanecer no SNS. Isso significa aumentar os anestesistas, descongelar as carreiras e abrir mais vagas nos concursos.."O valor que o governo paga é abaixo dos valores do mercado. E para resolver o problema têm de ser criadas condições para os médicos ficarem no Serviço Nacional de Saúde", diz o secretário-geral do SIM. "O governo prefere gastar 110 milhões de euros em prestadores de serviços (que é aquilo que gasta por ano) do que modificar seriamente a grelha salarial, que teve uma desvalorização de cerca de 23%.".Faltam 541 anestesistas no SNS.No Serviço Nacional de Saúde faltam 541 anestesistas. Segundo a presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia, este não é só um problema português e está relacionado com o envelhecimento da população, que passa a precisar de mais cuidados de saúde. E hoje estes recorrem muito à sedação para evitar a dor. "O aumento dos atos que pedem a presença de um anestesista cresceu de uma forma exponencial, que não foi compensado em nenhum sítio do mundo", diz Rosário Órfão..O Ministério da Saúde, através da ACSS, indica que pretende reforçar "as vagas na formação específica bem como a identificação de vagas para estabelecimentos considerados mais carenciados". No passado dia 16 foi aberto um novo concurso médico que disponibiliza 59 lugares para anestesistas..No entanto, Rosário Órfão lembra outros concursos em que as vagas ficaram por preencher por as condições de trabalho serem pouco atrativas. "O serviço de anestesiologia de Leiria há três anos que não tem um diretor de serviço. A diretora clínica é anestesia e acumula as funções. Os colegas que lá trabalham queixam-se de que há muito trabalho nas urgências. Além de se trabalhar muito, as pessoas veem que há riscos ao exercer a sua atividade profissional. Eram três anestesistas agora são só dois. Há médicos com muitos anos a rescindir contratos. Abriram agora duas vagas, mas claro que neste hospital vão ser das últimas a ser preenchidas ou não vão ser sequer.".A mesma preocupação pode ser dirigida ao Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), onde nesta segunda-feira se inicia uma greve de cinco dias convocada pelo SIM e pelo Sindicato dos Médicos da Zona Sul. A paralisação deve-se à carência extrema de anestesistas, principalmente nas urgências, onde há dificuldades em preencher a escala de serviço, o que "afeta gravemente a boa prática da atividade clínica", diz Jorge Roque da Cunha.."Há mais de um ano que os médicos vêm chamando a atenção, até com minutas de escusa de responsabilidade, para a carga de trabalho que têm, e em relação a isso o conselho de administração nada diz", refere. "Os médicos fazem e continuam a fazer milhares de horas extra por ano para os serviços não fecharem." Chegando ao ponto de o número de anestesistas escalados pelos sindicatos para assegurar os serviços mínimos durante os próximos dias serem superiores aos anestesistas presentes no dia-a-dia.