Em ucraniano, Marcelo manda abraço para o "corajoso e indomável" povo

No segundo dia em Kiev, Marcelo Rebelo de Sousa surpreendeu com um discurso na língua de Taras Shevchenko. No último dia da visita ao país, que coincidiu com o Dia da Independência da Ucrânia, frisou o apoio de Portugal. Quis condecorar Zelensky mas este, como sempre tem feito, recusou.
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"Não é perfeito, mas é entre todos o que fala melhor ucraniano." Junto à bancada de imprensa, um produtor de áudio comenta com um sorriso o que acaba de ouvir, na praça de Santa Sofia, em Kiev.

Que o uso da língua ucraniana tem aumentado no país ao longo do último ano e meio, já todos sabiam. Mas ninguém podia prever que chegasse ao ponto a que chegou na manhã desta quinta-feira. O dia servia para assinalar outro 24 de agosto, o de 1991 - 32 anos de independência da Ucrânia. Mas na discreta cerimónia para celebrar a data, foi Marcelo Rebelo de Sousa o centro das atenções, na praça de Santa Sofia, em Kiev. O Presidente da República distribuiu cumprimentos efusivos, arrancou sorrisos, sentou-se à direita da primeira-dama. Mas quando parecia que já não podia surpreender mais, fez o nunca ouvido em Kiev: discursou em ucraniano.

No palco estavam o Presidente da República da Lituânia, Gitanas Nauseda, o primeiro-ministro da Noruega, Jonas Gahr Støre, Volodymyr Zelensky e, claro, Marcelo Rebelo de Sousa. O verde-escuro de Zelensky contrasta com o azul-celeste e dourados da catedral de Santa Sofia a servir de pano de fundo. Para se dirigirem às poucas centenas de militares das forças armadas ucranianas, cada um escolheu uma forma diferente. O trabalhista norueguês preferiu usar o inglês. Nauseda, presença habitual na Ucrânia, usou o ucraniano, que é muito parecido à língua de Taras Shevchenko. Marcelo Rebelo de Sousa mostrou ter feito um curso intensivo de ucraniano. Entre todos os oradores, o português foi o mais breve, mas também o mais interrompido pelos aplausos. Volodymyr Zelensky esboçou mesmo uma vénia dirigida ao português. O mais recente aluno da língua de Taras Shevchenko passara com distinção no exame. Mas não foi só pela forma, também o conteúdo foi poesia para os ouvidos ucranianos.

Ao fim do dia, Marcelo Rebelo de Sousa haveria de explicar que a decisão foi tomada cinco minutos antes de começar a discursar. O texto era para ser outro e em inglês, mas não resistiu ao perceber que o homólogo lituano o fazia no que lhe pareceu ser ucraniano. Marcelo não quis ficar atrás de Nausėda e sacou do bolso a solução alternativa que trazia preparada. E, em bom português, acrescentou: "Fiz das tripas coração para falar ucraniano."

Marcelo voltou a assegurar que "Portugal estará e está sempre" com a independência do país. Voltou a condenar a "intolerável invasão russa". E também repetiu uma ideia de "legítima defesa" da Ucrânia sem a qual, repete Marcelo, "não haverá paz e segurança na Europa". Olhando para o futuro, o Presidente da República falou na União Europeia e na NATO. A jogar no campo dos afetos, Marcelo Rebelo de Sousa mandou um abraço para todo o "corajoso e indomável" povo. Um abraço que se tornou especial quando chegou à comunidade ucraniana em Portugal. "Slava Ukraina", que é como quem diz Glória à Ucrânia.

Da praça de Santa Sofia, os dois chefes de Estado seguiram para o palácio presidencial. Durante o encontro, Marcelo Rebelo de Sousa tentou entregar a Volodymyr Zelensky o Grande-Colar da Ordem da Liberdade, mas o ucraniano desde o início da guerra não aceita ser condecorado. Recusou, e a condecoração ficou-se pela protocolar entrega do diploma. A ajuda à Ucrânia foi o prato forte do encontro. Mas ainda faltava para o almoço. Uma visita de Zelensky a Portugal também foi avaliada. "Vamos ver quando será possível", respondeu mais tarde o ucraniano durante a conferência de imprensa conjunta no final do encontro. Aí o ucraniano de Marcelo voltou a ser tema. "Mas eu ouvi-o falar ucraniano esta manhã", disparou Zelensky, quando o Presidente da República disse que ia falar em português.

Marcelo aproveitou a conferência para voltar à comunidade portuguesa. "Um exemplo de integração desde muito antes da guerra", sublinhou Marcelo. O chefe de Estado português voltou a lembrar que Portugal vai ajudar a Ucrânia na logística que exige a operação dos caças F-16.

A morte do líder do Grupo Wagner foi um dos temas do dia na imprensa internacional e a Ucrânia não foi exceção. Volodymyr Zelensky negou o envolvimento de Kiev na queda do avião de Prigozhin. E a sorrir sublinhou: "Não era isto que tinha em mente quando falávamos ao mundo sobre aviões".

Para o dia da Bandeira da Ucrânia, Zelensky escolheu uma camisa com o corte e bordados tradicionais ucranianos. Menos convencional foi o almoço do dia (ver foto da ementa).

Despachada a conferência de imprensa, os dois chefes de Estado estiveram juntos pela última vez. A quarta em menos de 24 horas. Volodymyr Zelensky serviu a Marcelo Rebelo de Sousa tomates com queijo brynza (um queijo de ovelha fresco). Borsch Ucraniano, uma sopa que se pode beber fria, muito apropriada ao verão de Kiev, depois de se aquecerem com sopa de cantarelos cremosa. Nos pratos principais, aves aquáticas e peixe. Lombo de perca (uma especialidade muito apreciada no leste da Europa) e depois magret de pato. Os vinhos foram produzidos no sul da Ucrânia, bem perto da Moldova, quando a guerra ainda estava longe. O tinto foi Kolonist Cabernet Merlot LX Haut de Gamme de 2018. Uma edição especial feita por ocasião dos 60 anos do fundador da casa Ivan Plachkov. Para a perca, ficou o Chardonnay também do produtor Kolonist. Um Haut de Gamme de 2021, quando a chegada dos russos já se sentia no horizonte.

O almoço deu forças para regresso do "furacão" Marcelo às ruas de Kiev. À tarde Marcelo Rebelo de Sousa encontrou-se com o primeiro-ministro ucraniano, foi a um abrigo para crianças e visitou a catedral de Santa Sofia, "um símbolo da Resistência tanto no passado como ainda hoje", explicou Marcelo Rebelo de Sousa.

Mas o dia não terminou sem que o chefe de Estado português trocasse de novo as voltas à segurança ucraniana. O Presidente decidiu aproveitar o fim da tarde para testar a popularidade em Kiev. Se fosse uma sondagem, Zelensky bem podia começar a ficar preocupado. Sem que a agenda o fizesse prever, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu visitar a praça Maidan. O final de uma tarde de feriado quente convidava a visitar os tanques russos que lá estão expostos. Depois de um banho de multidão, o Presidente aproveitou para beber uma cerveja, "enorme e ótima", nas suas palavras. Um pesadelo para a segurança ucraniana e mesmo para a portuguesa mais calejada nestas passeatas.

Com cerca de dois anos e meio de mandato ainda por cumprir, o Presidente espera dentro desse tempo ainda regressar à capital ucraniana. "Quem não gostava de voltar a Kiev?", atira o presidente rendido aos encantos da cidade.

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