Ah, a minha língua, aquela de que hoje é o dia! Deve acontecer a muitos, não necessariamente a todos, gostar da sua língua. A alguns até acontece gostar por razões que não posso nem imaginar: em Taiwan, existe uma língua, o kavalan, que tem apenas 24 falantes. Ou tinha, porque li isso no ano passado e os falantes do kavalan são velhos. Que posso saber eu dessa condição? Mas posso saber o que é ter uma língua que encontro em tantos lugares e entre tanta gente. É tão bom. É desse português que quero hoje lembrar..Um dia, num livrinho estreito, li uma mulher a falar curtamente sobre o poder e a cupidez: que as fortalezas caíram por serem fortes, que as cidades de portos foram invadidas por corsários... Depois, Sophia foi ainda mais breve: "Porém Cacela/ foi desejada só pela beleza.".Um dia, escrevia eu sobre metecos. Vocês sabem, os estrangeiros que tinham permissão de viver na antiga Atenas. Ia por aí fora quando me telefonaram: "Morreu o Joaquim." Morrera Joaquim Pinto de Andrade no meio da minha crónica. Da sua crónica, ele que era cidadão do mundo. Mas o Joaquim não era angolano? Era, como ninguém mais do que ele. Ninguém conheci, dos pais da nacionalidade angolana, que mais pudesse dizer: não feri o meu país. Ele foi a coragem serena que lhe valeu prisões durante a Angola colonial, ele foi a fraternidade angolana quando o país se dilacerou em guerras civis, ele foi a honestidade quando Angola se ofuscou de falsa riqueza. E, na sua morte, lembrei-me de como ele me contou a infância no mato, em terras de Ambaca, a ler Camilo e Ramalho. Desse português, ele disse-me ser "de língua tersa." Pura, límpida, tersa..Um dia, eu almoçava numa taberna, em João Pessoa. De João Pessoa, capital da Paraíba, eu sabia menos do que do homenageado que deu o nome à cidade. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque candidatara-se a vice-presidente, junto a Getúlio Vargas, em 1930, quando foi assassinado na confeitaria Glória, no Recife, o que deu uma revolução. Mas a empregada de mesa botou conversa sobre outros heróis: Maria Bonita, brava (ela disse braba) mulher do cangaceiro Lampião, de nome Virgulino Ferreira da Silva, como sabem. Quem rematou a conversa foi a empregada, voltando a Maria Bonita: "Ela era um estropício." A última pessoa de quem ouvira dizer a palavra foi a minha avó..Um dia, em Quelimane, cercada pela guerrilha, um moçambicano descreveu-me o cenário de um filme do faroeste - era uma autobiografia e ele não era um cowboy. Era mecânico e trabalhava numa fazenda de cana-de-açúcar na Zambézia. A fazenda tinha equipa de futebol e esta fora a Quelimane para um amistoso. O mecânico, defesa esquerdo, já achara estranho o nervosismo do treinador ao intervalo. No fim do jogo, soube que a fazenda tinha sido ocupada pelos guerrilheiros da Renamo. O defesa esquerdo voltou a pé para a fazenda, rendeu-se ao sentinela que guardava a picada à entrada da aldeia - encostados ao imbondeiro, o sentinela e a Kalashnikov. O homem reencontrou a mulher e os dois filhos mas o mais novo morreu de paludismo. O trabalhador continuou a fazer de mecânico, o médio esquerdo deixou de jogar futebol e o pai escondeu uma piroga. Um dia, ele e o que restava da família fugiram numa piroga pelos meandros de um afluente do Zambeze. Do guião do filme, lembro-me de o homem que fugiu para dentro ter-me feito este resumo: "Porque sim." Assim, esses dois sons..Um dia, há pouco, ao ler uma notícia de prédio alto e pobre ter ruído em São Paulo, lembrei-me de Elis Regina a cantar: "Se o senhor não tá lembrado/ Dá licença de contá/ Que acá onde agora está/ Esse adifício arto/ Era uma casa véia/ Um palacete assobradado." Ao lado dela estava o autor da letra, Adoniran Barbosa, filho de imigrantes italianos analfabetos e pai de uma língua tersa..Um dia, porque eu não tinha dinheiro para pagar um carro só para mim, de Singapura para Malaca, meti-me numa carrinha com turistas alemães. Em Malaca pedi para passar por um pequeno porto, os outros torceram o nariz e só aceitaram porque prometi ser breve. Havia pescadores num molhe, dois reconheceram-me, entreguei-lhes a garrafa de porto que tinha prometido em visita anterior e lancei-lhes alto uma expressão: "Barku ki boa." Eles olharam para o céu, como quem procura um avião. Entrei na carrinha e os alemães perguntaram-me: "Fala malaio?" Abanei a cabeça, e mais não disse. Não lhes ia ensinar segredos seculares..Um dia ouvi uma mulata a fugir da guerra, num aeroporto incendiado, numa ladainha para os filhos agarrados às saias: "Atirei o pau ao gato/ Mas o gato...".Um dia, umas senhoras aperaltaram-se com vestidos estampados de hibiscos e convidaram-me para jantar, na ilha de Maui, Havai. Cantaram-me modinhas açorianas e diziam as palavras com a mais cerrada das pronúncias de São Miguel. Mesmo aquelas que só tinham antepassados da cabo-verdiana ilha Brava e da Madeira..Um dia, eu comentava na RTP Internacional a primeira conferência de imprensa de um presidente angolano e uma colega perguntou-me o que eu achara mais importante. Respondi: "João Lourenço ter dito: como sói dizer-se."