A Cimeira da NATO no mês passado em Madrid foi um sucesso retumbante, demonstrando a determinação duradoura do Ocidente em enfrentar o presidente russo, Vladimir Putin, na sua guerra à Ucrânia. Mas o valor da unidade ocidental contra Putin será diminuído num mundo que se está a tornar cada vez mais dividido, como mostraram as recentes reuniões dos ministros das Finanças e dos Negócios Estrangeiros do G20 na Indonésia. Essa tendência pode acarretar custos incalculavelmente altos, porque um mundo altamente polarizado não pode cumprir a tarefa mais importante do nosso século: garantir o fornecimento de bens públicos globais..Tais bens - incluindo um ambiente limpo, segurança internacional e saúde global - não podem ser fornecidos sem instituições globais eficazes. Pode-se esperar que uma crise, com grandes consequências globais, estimule a cooperação, como foi o caso do surgimento do G20 após a crise financeira global de 2008. Mas, embora as crises possam ter um efeito unificador, a guerra na Ucrânia está a paralisar os esforços para gerir as suas consequências globais..A globalização trouxe grandes avanços para a humanidade. Mas também trouxe novos riscos e desafios, que só podem ser geridos através de instituições multilaterais eficazes. Como o ex-vice-secretário de Estado dos EUA Strobe Talbott observou em 2001, pouco depois dos ataques terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos, "a globalização é como a gravidade. Não é uma política; não é um programa. Não é um bem; não é um mal. Está a acontecer". Mas, como a última década mostrou, mesmo que a globalização seja um fenómeno histórico inevitável, as rivalidades geopolíticas podem fraturar e fragmentar as instituições das quais ela depende, impossibilitando a montagem de respostas efetivas a desafios partilhados, como as alterações climáticas..Seguir a agenda global é incompatível com uma economia global fragmentada. Já está em andamento uma dissociação económica. Como resultado, aumentou o risco sistémico mais importante que o mundo enfrenta: a mudança para "duas globalizações", uma organizada em torno dos EUA e outra em torno da China. Se essa dissociação for concluída, as instituições multilaterais que foram criadas para gerir a globalização tornar-se-ão obsoletas..Mas a economia é apenas o começo. A guerra na Ucrânia está a reforçar a narrativa de que se instalou uma luta ideológica inevitável entre democracias e autocracias. Se essa perceção prevalecer, o mundo dividir-se-á inevitavelmente em blocos geopolíticos..Isso seria uma tragédia para os países do Sul Global, em particular. Esses países enfrentariam uma escolha fatídica entre dois blocos geopolíticos mutuamente exclusivos. Mas, independentemente do bloco que eles escolhessem, os problemas globais continuariam a revelar-se incontroláveis - e muito menos solucionáveis - sem o outro bloco. Depois de décadas a procurarem afirmar a sua soberania acima de tudo, os países em desenvolvimento estão a descobrir que as maiores ameaças que enfrentam - das pandemias à insegurança alimentar - não são afetadas pelas suas afinidades geopolíticas..Vale a pena notar, no entanto, que essas afinidades não são, em geral, com o bloco democrático. A maior parte do mundo olha com indiferença - e muitas vezes com suspeita - para as medidas robustas do Ocidente para isolar Putin. Por exemplo, enquanto a Europa trabalha para reduzir a sua dependência da energia russa, a Índia está a aumentar exponencialmente as suas compras de petróleo russo a preços promocionais..Ao contrário do Ocidente, o Sul Global não vê a guerra na Ucrânia em termos existenciais. Em vez disso, o conflito representa, acima de tudo, o aumento da escassez de alimentos e o aumento dos preços da energia. A crise política no Sri Lanka, por exemplo, não pode ser interpretada apenas pelo prisma dos desenvolvimentos internos. A interdependência continua a ser uma característica central e poderosa da ordem internacional..Num mundo cultural e politicamente diverso, a exclusividade democrática não é a maneira mais eficaz de construir pontes, especialmente com aqueles cujas necessidades materiais imediatas não estão a ser atendidas. Nesse sentido, os países ocidentais não se estão a beneficiar ao dar a impressão de que os fóruns em que se reúnem são, essencialmente, "cimeiras da democracia"..CitaçãocitacaoDurante a maior parte da minha vida, as relações entre o Ocidente e a Rússia foram definidas pela suspeita mútua - e às vezes, como agora, pela inimizade aberta. Isso não vai mudar durante muito tempo. Devemos enfrentar Putin, mas também devemos estender a nossa mão ao Sul Global.esquerda.Uma abordagem melhor reconheceria que a divisão global mais consequente hoje não é entre democracias e autocracias, mas entre países ricos e pobres. A pandemia da covid-19 sublinhou fortemente essa divisão. Em setembro de 2021, pouco mais de 3% das pessoas em países de baixo rendimento tinham recebido pelo menos uma dose da vacina, em comparação com mais de 60% em países de alto rendimento. Embora o pior da pandemia tenha passado, o ressentimento do Sul Global em relação ao Norte que acumula vacinas permanece. Se o Norte não transmitir um maior sentido de urgência para fortalecer a provisão de bens públicos globais, esse ressentimento só aumentará..É claro que as tensões com a Rússia complicarão os esforços das principais organizações multilaterais para chegar a acordos sobre desafios partilhados. Mas elas não impedem a cooperação. Isso ficou claro na reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio no mês passado, onde vários acordos valiosos foram alcançados. Por exemplo, os países elegíveis podem agora ultrapassar as patentes para a produção e fornecimento de vacinas contra a covid-19..É útil recordarmos a razão e o propósito subjacentes às sanções contra a Rússia. O Ocidente não impôs sanções contra o regime de Putin apenas porque este não cumpre um padrão democrático específico. As medidas são uma resposta à decisão de Putin de violar o princípio - fundamental ao Direito Internacional - de que as fronteiras de um Estado independente e soberano não podem ser alteradas pela força..Durante a maior parte da minha vida, as relações entre o Ocidente e a Rússia foram definidas pela suspeita mútua - e às vezes, como agora, pela inimizade aberta. Isso não vai mudar durante muito tempo. Devemos enfrentar Putin, mas também devemos estender a nossa mão ao Sul Global, fazendo todos os esforços para preservar as instituições que são tão essenciais para proteger os bens públicos dos quais todos nós dependemos..Javier Solana, ex-alto representante da UE para as relações exteriores e política de segurança, secretário-geral da NATO e ministro das Relações Exteriores de Espanha, é presidente do EsadeGeo - Centro de Economia Global e Geopolítica e Membro Distinto da Brookings Institution..© Project Syndicate, 2022