Em 1974, a queda do regime alterou a celebração dos Santos Populares
A 25 de abril de 1974, o nascer do sol era acompanhado por notícias, ainda confusas, sobre uma revolução em curso liderada pelo Movimento das Forças Armadas. Daí para a frente, a história é bem conhecida de todos. Em 2022, as celebrações da efeméride ganharam particular relevo pelo simbolismo histórico que carregam - pela primeira vez, Portugal tem agora mais tempo de democracia do que aquele vivido sob o peso da ditadura. Porém, e tendo em conta a importância de festas e tradições etnográficas para a máquina de propaganda do Estado Novo, como se viveram os Santos Populares cerca de mês e meio após a instauração da democracia?
O fenómeno não tem sido alvo, ao longo das décadas, do interesse de historiadores e olisipógrafos, mas o atual coordenador do Museu de Lisboa - Santo António, Pedro Teotónio Pereira, reconhece terem existido alterações à organização das festas. "A questão etnográfica estava muito em voga no Estado Novo, era uma corrente internacional", enquadra o mestre em Museologia e Património, que assim justifica a interrupção das marchas populares no coração da capital. Os arcos e as vestes coloridas ficaram arrumados pela forte conotação associada às quatro décadas de censura e repressão, ainda que, sublinha Teotónio Pereira, "o surgimento das marchas seja anterior" ao regime fundado por Salazar.
As raízes desta tradição cruzam-se com uma outra particularmente ligada ao culto a Santo António. Diz a crença popular e religiosa que no dia de Santo António, a 13 de junho, e de São João, a 24 de junho, "a água adquiria características mágicas e as pessoas faziam-se molhar nos campos, nas fontes e nos chafarizes". Este ritual, que levava "grupos de raparigas e rapazes" a sair dos bairros para encontrar pontos de água, levou ao surgimento, no século XIX, de uma "imitação das marchas francesas", marche aux flambeaux, em que os jovens "desciam pelos bairros a cantar" com velas penduradas em canas.
As marchas populares no formato em que as conhecemos hoje surgiram em 1932 como uma campanha de publicidade "por uma entidade privada para promover o Parque Mayer", conta Pedro Teotónio Pereira. O acontecimento, apenas um ano após a inauguração do Capitólio, foi "um sucesso" tal que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) começou a apoiar a realização das marchas em 1934. "Mas não foi uma coisa que se realizasse muitas vezes, era esporádico", aponta o responsável do Museu de Lisboa.
Ainda antes da Revolução dos Cravos, os cortejos "vinham a decair e a perder importância desde os anos de 1960", não se tendo realizado entre 1971 e 1974. "Depois do 25 de abril é anunciado o fim das marchas populares. Só são retomadas timidamente em 1981", refere. A organização regular da iniciativa regressaria apenas em 1988.
Até meados do século XX, o mês do solstício de verão em Lisboa era marcado pelas festas em honra de Santo António com "grandes fogueiras", música, comida e bebida nos bairros típicos da cidade. As preocupações com a segurança obrigaram à proibição das fogueiras, mas o espírito popular manteve-se.
"Não houve interrupção com a revolução porque os arraiais são uma festa popular que era organizada pelos bairros", afirma Teotónio Pereira. No entanto, a chegada da democracia criou uma expectável aversão da população às tradições e costumes fortemente associados ao Estado Novo, mas também à Igreja Católica. Foi o caso do concurso anual então conhecido como Noivas de Santo António, criado em 1958 pelo olisipógrafo Augusto Cortês Pinto e promovido pelo Diário Popular. "Em 1974, o concurso é completamente interrompido porque é mesmo entendido como uma festa organizada pelo regime", explica.
O legado cultural haveria de ser recuperado quase 30 anos mais tarde, em 1997, surgindo com um novo nome e novas regras - passaria a ser conhecido como Casamentos de Santo António, mas também a permitir a união de casais pelo registo civil.
"Há um acordo entre a CML e o patriarcado da cidade em que se estabelece que metade dos casamentos mais um têm de ser católicos e os restantes podem ser pelo civil", detalha o coordenador do Museu de Lisboa. Já em pleno século XXI, a autarquia e a instituição em que trabalha Pedro Teotónio Pereira recuperaram outra tradição perdida no tempo, os Tronos de Santo António. "A Igreja de Santo António ruiu parcialmente com o terramoto de 1755", diz, levando as crianças da cidade a criar "pequenos tronos à porta de casa" para reunir donativos.
Em 2014, os bairros típicos voltaram a aderir ao ritual que tem registado sucesso ano após ano. "Este ano temos 180 tronos inscritos em todas as freguesias. Dá uma decoração diferente à cidade e traz cor", descreve.