Ele aprendeu com João Gilberto, ela aprende com ele

Cada um tem os seus mestres e passa sabedoria para a geração seguinte. Assim é com o baiano Caetano Veloso e a carioca Teresa Cristina, que a cada concerto encontram novidades um no outro e têm no bolso lenços para limpar as lágrimas. Ele fala da primeira vez que pisou a África negra, uma viagem perturbadora à Nigéria em 1977.
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Ontem estavam na cidade belga de Antuérpia, amanhã cantam no Luxemburgo, depois de terem andado por Londres, Porto (a 25 e 26 de abril), Madrid, Pádua, Roma. Cantam na terça e na quarta no Casino Estoril e depois voltam às viagens europeias para terminar em Curitiba. No Facebook dele vamos acompanhando: no Museu do Prado e no Reina Sofía, eles com Almodóvar e com Laura Pausini, ela a ver a Piazza Navona e a Fontana di Trevi pelos olhos dele, eles arrastando as malas pelos aeroportos. Nos palcos, ela faz a primeira parte, meia hora a cantar sambas de Cartola, com Carlinhos Sete Cordas. Ele entra depois, com o violão, para uma hora de Caetano, o próprio.

Como se cruzaram as vossas duas carreiras, em momentos tão diferentes um do outro?

Caetano Veloso (C.V.) - Gostei muito da gravação dela da minha canção Gema e chamei-a para fazer parte de um show (Progresso e Obra) que eu tinha semanalmente, enquanto gravava o disco Zii e Zie. Ela disse que podia cantar qualquer uma das minhas canções. Terminámos cantando juntos mais do que eu imaginava. Ela sabe tudo, meu, do Paulinho da Viola, do Gil, do Milton Nascimento, tudo de música de rock, de música americana.

Como recebeu este convite do Caetano?

Teresa Cristina (T.C.) - Nesse dia, eu pirei. Imagine o Caetano chegando: você quer cantar o quê? Eu enlouqueci porque era muita a música que eu queria cantar com ele.

Como escolheu?

T.C. - Fui escolhendo pela lógica, não dá para fazer uma participação de uma ou duas horas. Fui vendo o olhar dele, onde brilhava. Ele quis cantar uma música do Paulinho da Viola, o Coração Vulgar, que é linda, cantei uma dele, Nu com a Minha Música, que já tinha gravado no álbum Três Meninas do Brasil [com Jussara Silveira e Rita Ribeiro, 2008], que é melancólica, linda. Acho que foi feita numa tournée, você vai passando pelos lugares, no interior de São Paulo, não é?

C.V. - Foi numa tournée em São Paulo, sim.

T.C. - É uma música muito bonita, com um ritmo muito diferente. A mesma coisa aconteceu agora com este show. Quando tive de escolher as músicas para cantar com ele, a primeira de que me assegurei era que Como Dois e Dois tinha de estar. É a música que eu conheço há mais tempo na minha vida e acredito que tenha sido a primeira que eu cantei, imitando a minha mãe.

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E cantar com ele em palco?

T.C. - [tapa a cara com as mãos] É brabo. Mas é muito bom. Muito bom. Eu começo cantando e toda a vez que ele entra me dá uma vontade de chorar absurda. Como já conheço o caminho da emoção desse espetáculo, preparo-me antes, já sei que ela vai aparecer, vou soltando a emoção antes. Quando chega o Como Dois e Dois, estou fresca.

O Caetano, no palco, sente essa emoção?

C.V. - Sinto muitas emoções. Gosto muito de assistir à parte dela, sempre assisto.

Não lhe apetece entrar no palco e começar a cantar com ela?

C.V. - Ao contrário, eu não quero me meter para não atrapalhar. Gosto de ficar ouvindo. E toda a vez aquele samba sobre a Mangueira, Sala de Recepção, eu fico emocionado. Muitas vezes eu choro na coxia.

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Isto é um problema, vocês têm de andar sempre com Kleenex.

C.V. - Eu ando com Kleenex.

Sabia que ele chora?

T.C. - Eu não vejo que ele está me vendo. O olhar do Caetano é minimalista mas pode definir as coisas. Antes de o espetáculo acontecer, ele falou comigo de um jeito que me mudou.

Em que sentido?

T.C. - No sentido de me observar, de saber como eu canto, de que maneira encarava a música. Sempre fui muito careta cantando, não na vida. Sempre tive muito respeito pelas pessoas que cantam samba, e joguei esse respeito na interpretação. Ele conversou de um jeito tão carinhoso mas atento que entendi que queria que eu ousasse. Com tantos anos de carreira ninguém me tinha falado assim. Vejo--me cantando hoje e fico vendo vídeos antigos e sei que quem descobriu essa Teresa foi ele.

C.V. - Ela apresentava os sambas, tanto nas gravações quanto ao vivo, com uma seriedade, uma espécie de modéstia que fazia que as interpretações ficassem neutras. Eu disse que ela devia quebrar isso e vir com coisas dela.

Da primeira vez teve medo?

T.C. - Tive mais medo quando ele falou. Ele observa, às vezes diz uma frase curta que pode querer dizer muita coisa e eu guardo. Levei a conversa para casa, fiquei imaginando, e fui jogando isso no meu repertório - nas canções, nos assuntos onde podia usar. Eu sou muito tiete [admiradora] da Gal, da Bethânia, da Nana Caymmi. Perguntou: "Do que gosta nessas pessoas? O que te arrepia? Porque não tenta se abrir como elas, não imitando, mas do seu jeito?" Era uma conversa com Caetano falando de mim, eu tinha que tentar tirar disso o máximo possível. Não quer dizer que o show está pronto, há detalhes que ele vai ajeitando na dinâmica da voz - não precisa gritar sempre, precisa fazer silêncio.

C.V. - Ela evitava até fazer mudança de dinâmica, como se isso fosse mexer no samba, para manter o respeito. Ficava linear.

E sente-se bem nessa nova maneira de cantar?

T.C. - Além de me sentir bem, sinto-me bonita. Encaro a plateia, coisa que nunca aprendi a fazer. Fechava o olho, tinha medo.

C.V. - Quando vi o espetáculo depois de falar com ela fiquei emocionadíssimo, porque aproveitou tudo o que eu disse. A pouco e pouco vou dizendo mais coisas.

O Caetano teve alguém que o ensinasse, aprendeu com a vida?

C.V. - Aprendi muito com as pessoas que ouvia cantando no rádio e com as coisas de que eu gostava. E depois principalmente com João Gilberto que me dava todos os conselhos sem falar comigo. Quando o conheci, ele é muito inteligente e disse coisas que me orientaram muito.

O Caetano passou a vida a mudar e a avançar.

C.V. - É o meu temperamento. Não sinto compromisso com o que faço.

O que é que isso quer dizer?

C.V. - Comecei a cantar como uma coisa provisória e ainda tenho essa sensação. Em todo o movimento tropicalista pensei: vou organizar isto um bocadinho para deixar a turma cantar e vou fazer outra coisa. Pintava, desenhava, escrevia, mas queria fazer cinema.

E chegou a fazer, até com o Glauber Rocha.

C.V. - Estive muito com ele, em Londres ele passou um mês em minha casa. Viveu em Sintra e voltou para o Brasil só para morrer.

Há um momento que imagino que lhe bateu forte. Foi quando esteve na Nigéria, em 1977. Um brasileiro com as suas convicções chegar àquela África negra...

C.V. - Foi uma experiência muito forte, demorei muito a metabolizar e ainda é uma questão dentro de mim. Foi bacana e difícil. Parámos em Dacar, um lugar muito bonito, com pessoas elegantes, trajes africanos, as mulheres com os cabelos trançados - no Brasil ainda não havia esses penteados criativos. Fiquei apaixonado. Ainda por cima o João Cabral de Melo Neto era o embaixador do Brasil lá e recebeu-nos, eu e o Gil passámos a tarde conversando com ele.

O presidente do Senegal era Léopold Senghor nessa altura?

C.V. - Podia ser, sim. Achei muito bonito, fiquei muito emocionado por estar pela primeira vez na África negra. Dali fomos para Lagos, Nigéria, um lugar meio terrível. É uma cidade grande, não é bonita, o céu nunca está azul. Aliás, grande parte da África Ocidental é assim, por causa da poeira do deserto do Sara e da humidade das florestas, essa combinação dá um céu nublado permanente, não se vê estrelas. É uma cidade suja, desorganizada, a polícia batia com chicote nas pessoas na rua. Quando voltei, disse ao professor Agostinho da Silva: a impressão que me deu é que aquilo não tem futuro. Ele respondeu: pois não tem, por isso mesmo precisamos de fazer esse futuro.

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