"Ela disse que isto ia acontecer." Foi com esta frase arrepiante que uma mãe comentou o crime desta semana - um pai a matar a filha de 2 anos e a ex-sogra - num grupo privado do Facebook dedicado a famílias monoparentais. Sandra Cabrita - mãe e filha das vítimas - era amiga de várias pessoas deste grupo. E teria partilhado com as companheiras virtuais o risco que corria: Sofia Abreu, uma das mães do grupo, tinha conhecimento da história "das constantes ameaças de morte à Sandra e à família", desde, pelo menos, novembro de 2018.."Uma amiga da Sandra contou-me que ela vivia aterrorizada e que já tinha feito várias queixas à polícia", disse ao DN. Neste grupo, depois desta história macabra, ninguém entende como "uma vítima de violência doméstica é obrigada a estar no mesmo espaço do agressor", que era o que iria acontecer nesta segunda-feira quando o ex-casal se encontrasse no Tribunal de Família e Menores do Seixal para tentar chegar a acordo em relação à regulação do poder paternal - um processo aberto desde 2016. O perigo que corria ficou demonstrado pelo que aconteceu..Mas há pior do que essa presença em tribunal que acabou por não existir. Na verdade, este caso de violência doméstica, que tantas vezes passa abaixo do radar das autoridades, já tinha sido identificado. Foi a própria Sandra que fez queixa do marido - de ameaças e coação, não de vias de facto, em 2017. A queixa foi acolhida pela PSP do Seixal como sendo um caso de "violência doméstica", especificamente "violência psicológica e social", num caso que a própria autoridade policial classificava de "risco elevado". E foi essa informação que foi transmitida ao Ministério Público (MP)..Arquivamento e desistência da queixa.Mas isso acabou por não ter nenhum efeito, porque o Ministério Público arquivou o processo. Respondendo a perguntas do DN, o MP apenas revelou que foi encontrado um inquérito de 2017, arquivado por desistência da queixosa. E que esse inquérito tratava de um crime de coação e ameaça e não de um crime de violência doméstica. Ou seja, se assim fosse, por ser um crime público, Sandra Cabrita até poderia ter desistido da queixa, que a investigação iria prosseguir na mesma. Como não foi classificado como tal, a desistência da queixosa levou ao arquivamento. Ninguém explicou ainda por que razão este processo não foi classificado como um caso de violência doméstica..O DN voltou a questionar o Ministério Público para confirmar se esta queixa que a PSP classificou de "risco elevado" foi a mesma que acabou arquivada e classificada apenas como um episódio de "coação e ameaça". A PGR respondeu dizendo que nada tinha a acrescentar à informação inicial: "Na jurisdição criminal, foi localizado um inquérito em que se investigou um crime de coação e ameaça. O mesmo foi arquivado por desistência de queixa da ofendida." Na resposta enviada ao DN, o MP refere ainda que corria no Tribunal de Família e Menores um processo relativo à regulação das responsabilidades parentais, confirmando que nesta segunda-feira tinha sessão marcada..Esta sessão era particularmente complicada para Pedro - ia ser confrontado com uma tentativa de mudança do poder paternal, ao que o DN apurou, que lhe podia retirar a guarda partilhada da filha. Além disso, ia ter como testemunhas de acusação os seus próprios pais - razão pela qual, no momento do homicídio, a ex-sogra estava com Sandra Cabrita no café dos pais desta, antes de testemunhar em tribunal, por volta das dez da manhã. Este dia que seria sempre importante na vida desta família transformou-se numa tragédia. Pedro Henriques matou a ex-sogra e fugiu com a filha, de 2 anos. Mais tarde acabaria por matar a filha e a si próprio. Foi encontrado morto, em Castanheira de Pera, terra de onde era natural..O choque nas redes sociais não era diferente do das conversas na Amora, sítio onde Sandra e a filha viviam, em casa dos pais, desde a separação. Várias televisões acompanharam a retirada do carro preto onde a criança foi encontrada morta, no terreno onde fora abandonado por Pedro Henriques. À porta da pastelaria Orly - dos pais de Sandra - vários jornalistas esperavam quem nunca chegou: ficou encerrado durante o dia todo..Primeiro, a revolta, depois o desejo de fazer justiça, mais tarde, quando o mal estava todo feito, o silêncio. O que vizinhos sabiam era aquilo que ouviam na televisão e nos jornais. De que a relação entre o ex-casal era difícil só alguns tinham conhecimento. Ninguém conhecia Pedro Henriques, que nunca morou naquela zona - o casal terá comprado um apartamento em Torre da Marinha, mais afastada de Cruz de Pau. O jardim-de-infância que Lara frequentava foi um dos primeiros locais onde a PSP foi procurar a criança, na manhã do seu desaparecimento..Autópsia esclarece asfixia.No grupo de mães, a coberto do anonimato das redes sociais, houve, durante todo o dia, quem escrevesse que tinha "medo" do ex-companheiro, medo até de ir a tribunal para regular o poder paternal, muito medo de que as ameaças recebidas se cumpram - ou que o exemplo de Sandra Cabrita se repita..A autópsia à criança de 2 anos vai ser realizada nesta quarta-feira no hospital do Barreiro. O que sair da investigação será fundamental, porque há ainda dúvidas do que poderá ter causado a morte. A criança foi encontrada morta na mala do carro do pai, depois de o alegado assassino ter ligado para o INEM a dar a localização da viatura. Fontes ligadas ao processo adiantaram ao DN que numa análise preliminar tudo indica que a criança tenha sido asfixiada pelo pai..Pedro Henriques esteve em fuga durante praticamente 24 horas. Segundo informações de fonte policial, foram feitas tentativas de localização através do sistema de triangulação de antenas que detetam sinais de telemóvel, mas o suspeito não traria consigo um telefone detetável.