EKUI. Uma metodologia inclusiva contra um modelo de escola pronto-a-vestir

Celmira Macedo criou uma nova metodologia de aprendizagem multissensorial distinguida como uma das 100 melhores inovações do mundo na área educativa.
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Quando acreditamos no que fazemos e sabemos que tem impacto na vida das pessoas, é muito difícil assobiar para o lado", diz Celmira Macedo. E esta professora, que o destino desviou dos sonhos da advocacia, tem feito tudo menos assobiar para o lado perante os desafios que encontrou no dia-a-dia das escolas. Começou a trabalhar com crianças com necessidades especiais em Trás-os-Montes, há 20 anos, fundou uma escola para ajudar os pais dessas crianças, mergulhou na investigação sobre as melhores práticas de educação inclusiva e inventou uma nova metodologia de aprendizagem que começou por implementar sozinha, nas suas salas de aula, mas saltou paredes e fronteiras para uma comunidade que abarca já cerca de 150 mil pessoas em mais de uma dezena de países. No ano passado, a metodologia EKUI, criada por Celmira, foi distinguida como uma das 100 mais inovadoras do mundo pela HundrED, prestigiada organização finlandesa dedicada à inovação na Educação.

Na vida de Celmira Macedo - uma das oradoras da TEDx Porto, este sábado, no edifício da Alfândega - o ano de 2003 assinala um marco importante. "Foi quando comecei a trabalhar com crianças e jovens com necessidades específicas, desde síndrome de down a autismo e outros. Aí fui confrontada com a minha própria incompetência enquanto professora", lembra, em conversa com o DN. Limitações impostas por "um modelo de ensino de tamanho único", um "one size fits all" que "não se adapta às necessidades das crianças". Habituada também ela a sofrer na pele a discriminação - sentida quando regressou de Angola, aos seis anos, com os pais e era alvo da "desconfiança de professores e colegas" - Celmira recusou aquilo que chama de "síndrome da Gabriela". "É o eu nasci assim, eu aprendi assim, eu vou ensinar assim", explica, numa alusão ao popular refrão da canção de Gal Costa que ecoava no genérico da telenovela brasileira Gabriela no final dos anos 1970.

Ou seja, Celmira Macedo recusou-se a assobiar para o lado e encontrou a sua motivação pessoal para mudar o mundo. No caso, a procura por um modelo de educação verdadeiramente inclusivo. Na altura, dava aulas em Vinhais, uma vila do distrito de Bragança. "Perante aquele confronto decidir ir à procura de informação. Não estava preparada do ponto de vista pedagógico, nem científico, para fazer face àqueles problemas". Decidiu ir fazer um doutoramento em Salamanca, do outro lado da fronteira. "Eu precisava de ajudar aquelas crianças, mas não só, também tinha de ajudar os pais. Porque se os pais não tiverem capacidade ou competências para lidar com os filhos, o problema fica em aberto", recorda.

Na universidade espanhola, para onde ia e vinha todos os dias, começou a estruturar as ideias que semearia nos anos seguintes junto de alunos, pais e outros professores. "Aprendi muita coisa sobre metodologias multissensoriais e começou a fazer-se luz", diz.

Em Portugal aplicou essas práticas ao contexto que tinha. Fez trabalho de campo com 300 famílias da região de Bragança, criou formação para pais de crianças com necessidades especiais, abriu inclusive seis escolas de pais NEE (necessidades emotivas especiais), a primeira delas deu origem a uma associação para apoiar famílias de pessoas com deficiências, e desse ecossistema nasceu ainda uma colónia de férias. Em simultâneo, ia ganhando forma a EKUI, a metodologia hoje validada do ponto de vista científico e reconhecida internacionalmente.

E o que é afinal a EKUI? O acrónimo para equity (equidade), knowledge (conhecimento), universality (universalidade) e inclusion (inclusão). Os quatro pilares de uma "metodologia multissensorial inclusiva que simplifica e acelera a aprendizagem, potencia a comunicação e desenvolve a empatia", como é apresentada no site oficial. "A EKUI tem por base um conceito científico que se chama desenho universal para a aprendizagem, que prevê que temos de ativar três áreas em simultâneo para que a aprendizagem aconteça: áreas da representação, expressão e envolvimento", explica Celmira.

Partindo desse pressuposto, começou a estudar diferentes formas de representação das letras do alfabeto e chegou e criou um conjunto de 26 cartas representativas das letras do alfabeto que incluem quatro formas de comunicação: a gráfica (letras), o código Braille, a Língua Gestual Portuguesa e o alfabeto fonético (sons e formas de os articular). A mesma carta, portanto, responde a diferentes abordagens de aprendizagem e comunicação. "Não há mais formas de representação de uma letra do que estas", justifica.

A EKUI começou por ser uma metodologia para crianças com necessidades especiais, mas evoluiu para uma metodologia universal de ensino. "A partir de 2015, quando fomos com a organização para o terreno, começámos a perceber que não só as crianças com dificuldades de aprendizagem ou qualquer tipo de deficiência aprendiam mais rápido, como as outras aprendiam também muito mais rápido", recorda. Usar as quatro formas de comunicação significa que ninguém é "um estranho" e capacita as crianças a ter "maior empatia" pelo outro, contribuindo assim para um ambiente escolar "mais inclusivo e diverso".

A metodologia começou por ser utilizada junto das crianças do primeiro ciclo e alastrou-se entretanto para idades pré-escolares, nos jardins de infância, onde entra em ação o personagem Ekui, um duende super-herói protagonista de um conto onde enfrenta o monstro das barreiras (que "somos todos nós"). "Neste momento estamos a começar a montante. Apanhar o rio enquanto ainda não está poluído", diz, desmontando as várias etapas do processo. "A EKUI começa por ser uma brincadeira, depois passa a ser um jogo, depois é uma metodologia e fica como uma lição para a vida".

De 2015 até agora a EKUI chegou "até quase 600 escolas e de forma direta a mais de 12 mil crianças", com a comunidade a crescer à medida que professores e pais vão mostrando cada vez mais interesse na metodologia. Têm ações de formação para professores, programas de mentoria, acompanhamento no terreno em algumas escolas. Mas resiste um lamento: não ter visto ainda a EKUI adotada como política pública em Portugal, apesar de todos os reconhecimentos vindos do exterior (Celmira Macedo é também, desde 2021, fellow da Ashoka, organização internacional que apoia o empreendedorismo social) e mesmo cá dentro, onde a EKUI já recebeu várias distinções e faz parte do programa Portugal Inovação Social.

"Eu sempre acreditei que esta metodologia ia assumir política pública mais cedo lá fora do que cá dentro e não me vou enganar muito", aponta. Reuniões com o Ministério da Educação já houve, a última já depois da distinção da Hundred, mas... "é como no futebol, quando a primeira entrada é a pés juntos, duvidamos das intenções".

Celmira defende que é necessário "reformular o sistema de ensino e transformar todo o ecossistema em situações de aprendizagem". "Estamos no século XXI a ensinar ainda como se fazia no séc XIX", critica. Entre as mudanças necessárias, enumera "as avaliações de impacto, absolutamente fundamentais para avaliar as nossas práticas", mas também a formação de professores "que não contempla a diversidade e a inclusão". É a história do one size fits all. "A educação não pode ser assim porque agrava desigualdades".

Mais do que dinheiro, diz, é preciso vontade para a mudança. "Tenho um amigo que diz que a vontade é o recurso renovável mais importante do nosso tempo. E tem razão". A vontade que a criadora da EKUI não perdeu, mesmo depois de dois AVC lhe lembrarem que andava "a viver a mil à hora". Celmira Macedo não é mesmo mulher de assobiar para o lado.

rui.frias@dn.pt

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