Minutos depois de Lula da Silva (PT) destacar o combate à pandemia como prioridade no discurso no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, dia 10, Jair Bolsonaro (sem partido) aparecia, pela primeira vez em cinco meses, com uma máscara num evento no Palácio do Planalto. A atitude do presidente do Brasil, depois de em meados de fevereiro ter criticado o uso da proteção, é considerada simbólica: Lula, ao regressar sem amarras jurídicas ao combate político, transformou o seu maior rival na presidencial de 2022. E não só ele..Na rentrée política de Lula, uma das frases de maior efeito foi sobre a pandemia, o atual presidente e o seu ministro da Saúde, o general paraquedista Eduardo Pazuello: "Brasileiros, não sigam nenhuma recomendação imbecil do Bolsonaro ou do Pazuello", clamou o antigo presidente sob o aplauso dos apoiantes em redor. E, na passada nesta segunda-feira, o presidente já demitiu o seu ministro, trocando-o por um médico cardiologista, Marcelo Queiroga, após recusa da também cardiologista Ludhmila Hajjar. "Temos de ser mais agressivos no combate ao coronavírus", justificou Bolsonaro..Hélio Schwartsman, colunista do jornal Folha de S. Paulo, resumiu a situação. "Quanto medo Bolsonaro tem de Lula? Bastante, já que o capitão resolveu demitir o general e se esforçou para convidar gente com qualificação técnica para exercer o cargo. A primeira cotada, Ludhmila Hajjar, recusou; o segundo, Marcelo Queiroga, aceitou."."De todo o modo, é positivo que Lula tenha entrado na equação. Ao tentar viabilizar-se como candidato que busca ganhar espaço entre eleitores do centro político, Lula não dá a Bolsonaro alternativa que não a de o imitar. Recoloca assim em jogo o teorema do eleitor mediano, segundo o qual os principais postulantes num pleito maioritário buscam a chancela da maioria dos eleitores mesmo que sacrificando o apoio dos mais radicais. Até este estranho começo de século XXI, essa era a regra nas democracias", concluiu..O "efeito Lula" fez Bolsonaro passar de negacionista a ex-negacionista, levou-o ao uso de máscara sem mais reclamações, estimulou o seu filho mais envolvido em corrupção, o senador Flávio Bolsonaro, a publicar nas redes sociais apelos a favor da antes execrada vacina e precipitou a troca de um ministro militar da estrita confiança do núcleo duro presidencial por um médico pro-confinamento e pro-vacinação..Entretanto, o "centrão", conjunto informal de partidos que em troca de cargos na administração pública blinda o presidente de eventual impeachment, também não ficou indiferente ao fenómeno Lula. "Ele mostrou que não vai dar trégua ao presidente nas suas aparições políticas e públicas. A situação do Bolsonaro era muito confortável, não é mais", advertiu José Nelto (Podemos), um dos líderes do "centrão", assim como Arthur Lira, o poderoso atual presidente da Câmara dos Deputados..Sondagem da PoderData, realizada de 15 a 17 de março em todo o país com 3500 pessoas e margem de erro de 1,8%, indica que, se a eleição presidencial fosse hoje, Bolsonaro, com 30% das intenções de voto, perderia para Lula, com 34%. Num cenário de segunda volta, o antigo sindicalista obteria 41 pontos contra 36 do ex-militar..Por outro lado, a chamada "terceira via", o grupo de presidenciáveis do centro-esquerda ao centro-direita que visa romper a bifurcação Lula-Bolsonaro, também sentiu na pele os efeitos da reentrada em cena do presidente de 2003 a 2010. Desde logo, Ciro Gomes (PDT), terceiro classificado nas eleições de 2018, Luciano Huck (ainda sem partido), apresentador da TV Globo, Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde do atual governo, e João Doria (PSDB), governador de São Paulo, afinaram o discurso.."Eu acho muito improvável que a sociedade brasileira queira repetir aquela confrontação odienta, sectária, radicalizada que marcou a divisão da nação brasileira em 2018", disse Ciro. "Figurinha [cromo] repetida não completa álbum [caderneta]", ironizou Huck. "Os extremos comemoram, pois se nutrem um do outro. A rutura da liga social brasileira avança", refletiu Mandetta..E Doria, aquele cuja pré-candidatura parecia mais oleada, ancorada na aquisição da primeira vacina para o Brasil, a chinesa Coronavac, ia mais longe. "Ficam estabelecidos dois campos claramente adversos de polarização, a extrema-esquerda, que canalizará sentimentos pro-Lula, e a extrema-direita, que canalizará sentimentos pro-Bolsonaro." "Se o centro democrático tiver juízo e bom senso trabalhará para, em primeiro lugar, construir uma proposta para o Brasil e, depois, em identificar um candidato que seja competitivo, que possa disputar com duas personalidades com forte densidade política e eleitoral.".Uma semana depois, entretanto, com base em sondagens e pesquisas de opinião, Doria deu dois passos atrás em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. "Diante deste novo quadro da política brasileira, nada deve ser descartado", conformou-se o governador quando questionado se punha a hipótese de abdicar de concorrer ao Palácio do Planalto em troca de entrar na disputa por mais quatro anos rumo ao Palácio dos Bandeirantes [a sede do governo paulista]. Por "novo quadro", leia-se a entrada de Lula na corrida..Doria, em reunião rara com centrais sindicais no dia 15, até sugeriu encontros trimestrais com os representantes dos trabalhadores. "Efeito Lula!", afirmaram os líderes de CUT, Força Sindical, UGT, CTB, CSB e Nova Central. Aliás, as próprias centrais também deixaram desavenças para trás e já admitem, num cenário de Lula candidato, unirem-se em torno dele - incluindo a Força Sindical, liderada por Paulinho da Força, que enquanto deputado foi um ferrenho defensor do impeachment de Dilma Rousseff e ascensão ao poder de Michel Temer..Voltando a Doria, o próprio governador paulista telefonou a Gleisi Hoffmann, presidente do PT, a solidarizar-se com Lula no caso do empresário que gravou vídeo a ameaçar o antigo presidente de morte. Doria, que também vem sendo ameaçado por supostos bolsonaristas, pôs o seu secretário de Segurança Pública, general Campos Pires, a investigar o caso..À esquerda, o PSol, partido que desde a sua fundação, em 2004, apresentou sempre um candidato presidencial independente do do PT, admite, pela voz do seu principal nome, Guilherme Boulos, uma união à esquerda desta vez porque o restabelecimento dos direitos políticos de Lula "altera o jogo para 2022". Flávio Dino, presidenciável do PCdoB, também já anunciara que abdicaria de eventual candidatura em favor de Lula..Os sintomas do "efeito Lula", entretanto, não se restringem ao campo político - no económico, o risco do crescimento de um candidato avesso, por exemplo, a privatizações assusta numa primeira análise os investidores.."Enquanto ficar claro para o mercado que certas posições orçamentais não são o que precisamos, o stress vai continuar", disse Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados à CNN Brasil..O "efeito Lula" em Bolsonaro também preocupa a Faria Lima, a Wall Street brasileira. "Lula criou uma retórica que força o presidente Bolsonaro a tomar decisões mais de curto prazo em detrimento aos ajustes de longo prazo propostos pelo ministro da economia Paulo Guedes", adianta André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos.