Educação. Novo programa de Matemática não reúne consenso

Sociedade Portuguesa de Matemática critica o programa e chama-lhe "Matemática da ótica do utilizador". Associação de Professores aprova as mudanças. Docentes dizem estar preocupados com a extensão do programa.
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Está em discussão pública (até dia 15 de setembro) o novo programa da disciplina de Matemática para o Ensino Secundário e as opiniões dos especialistas sobre as futuras alterações dividem-se. As mudanças são muitas e traduzem a vontade de transformar a Matemática numa disciplina "para todos".

Por isso, o grupo de trabalho responsável pela elaboração das propostas para o novo programa incluiu ideias inovadoras como a Matemática para a Cidadania e temas como modelos financeiros ou processos eleitorais.

Alterações que não agradam a João Araújo, presidente da Sociedade de Matemática (SPM). O responsável critica o excesso de matemática utilitária do novo programa e a falta de clareza. "Um programa tem de ser claro, tem de estar densificado (num documento de tipo metas curriculares) e tem de especificar o nível que se pretende atingir (através de uma lista de exercícios-tipo produzida pela tutela). Se o que há a aprender não está bem delimitado, os alunos ficam sem saber se estão a 100 m da meta ou a 1000 km, o que os condena ou ao estudo permanente ou ao peso contínuo "devia estar a estudar. Isto é inaceitável. Tem de haver vida para além da escola", explica.

O presidente da SPM salienta que "uma intervenção pedagógica para um país inteiro exige tanta seriedade e responsabilidade como a autorização de um fármaco para um país inteiro". A propósito das novas formas de avaliar os alunos que fazem parte das propostas em discussão, João Araújo diz não existir "evidência científica sobre os efeitos na aprendizagem".

"Pôr alunos a fazer vídeos é muito fácil, enquanto fazer bons instrumentos de feedback preventivo, os que identificam com precisão as lacunas na aprendizagem, custa muito. E aqui está o cerne da questão: exigência no ensino significa acima de tudo exigir muito esforço aos adultos para que o esforço das crianças seja menor. Programas há muitos. Estruturar um programa que permita às crianças aprender muito e bem em pouco tempo é que custa imenso esforço e tempo a adultos muito competentes e sabedores. Os professores não precisam de mandar crianças fazer vídeos para substituir avaliações. Os professores precisam de ser deixados em paz. Tirem-lhes a burocracia que esmaga", sustenta.

Questionado pelo DN sobre a eficácia das mudanças na atratividade da disciplina, João Araújo é perentório. "Duvido que tabelas de IRS, flutuações da bolsa ou aprender o método de Hondt (que é diferente da teoria matemática dos processos de eleição, algo que valeu um Nobel) mostre a alguém as maravilhas da matemática, convença alguém a ir para matemática, deixe alguém fascinado com a matemática. De facto, era muito melhor a equipa ter chamado ao seu programa "matemática na ótica do utilizador". Leio e releio os argumentos a favor das aplicações da matemática e tudo parece justificar de igual modo que em português se substitua Miguel Torga pelo estudo da declaração das finanças. Quem lê Pessoa, consegue ler os formulários das finanças e muito mais; quem sabe matemática, sabe ler juros, escalões de impostos e muito mais. Já quem perde tempo a estudar declarações de impostos, dificilmente perceberá Pessoa ou a maravilha da matemática", afiança.

O novo programa passará, também, pela introdução do pensamento computacional. O presidente da SPM discorda que este faça parte do programa, mas reconhece a importância da sua introdução, mas como uma disciplina "à parte". "Faz todo o sentido introduzir a programação do pré-escolar ao secundário, mas numa disciplina autónoma. O argumento de que não se pode multiplicar o número de disciplinas não colhe: o IB, um programa internacional do secundário e de referência, tem matemática, tem informática e não multiplica o número de disciplinas. A Mona Lisa é muito importante; um autoclismo também. A ideia de meter informática na matemática é como acoplar um autoclismo à Mona Lisa: destrói a função de ambos. Profissionalmente, sou especialista em matemática computacional, em inteligência artificial aplicada à prova de teoremas, pelo que devo saber algo disto", conclui.

Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática (APM) vê com bons olhos as propostas de mudança e relembra que estão em discussão quatro diferentes programas (Aprendizagens Essenciais - AE) de Matemática do Ensino Secundário, sendo três deles novos: Matemática A, Matemática B e Matemática do Ensino Profissional. Apenas MACS vai manter o programa atualmente em vigor.

"O que está enunciado nas introduções destes documentos curriculares vêm, globalmente, ao encontro daquilo que há muito a APM defende: currículos significativos para os tempos presentes e com capacidade para responder aos desafios futuros, desde questões de formação para a cidadania ativa, passando pela boa utilização, sem preconceitos, de ferramentas digitais, com incidência na resolução de problemas, modelação e conexões, incluindo diversidade temática e também de abordagens, e sobretudo privilegiando a compreensão e a autonomia dos alunos", afirma a responsável. Lurdes Figueiral sabe que se trata de "alterações profundas", e reconhece que "são programas exigentes, para alunos e professores, mas podem ser bem mais aliciantes que os atuais, sobretudo o de Matemática A, cheio de rotinas de cálculos repetitivos e fastidiosos, com pouco interesse para a generalidade dos alunos e, em meu entender, de uma rotina pesada para os professores". "O programa de Matemática B estava desadequado em relação aos destinatários e no Ensino Profissional era tanta a diversidade e hipóteses de escolha que tornava insustentável uma boa gestão do currículo e uma base comum significativa. Estas alterações eram, sem dúvida, necessárias; esperemos que sejam, ou se venham a tornar, suficientes, sobretudo pela mediação qualificado dos professores que têm aqui um desafio, mas, acredito também, uma compensação à sua necessidade de aprender sempre, de melhorar sempre, de responder cada vez melhor às necessidades e interesses dos seus alunos. Esteja a tutela ao nível destes desafios, com o reconhecimento e o apoio necessários, que os professores também o estarão", afirma.

Sobre o futuro da disciplina de Matemática, Lurdes Figueiral diz estarem a ser trilhados "caminhos acertados", com "um ensino básico comum que desenvolva capacidades matemáticas fundamentais para a aquisição e o desenvolvimento de uma literacia matemática básica; um ensino secundário com ofertas diversificadas, mas com uma base comum".

Para Vasco Ribeiro, docente de matemática do Ensino Secundário há duas décadas, "é importante que as decisões que forem tomadas perdurem no tempo e estejam adaptadas à nossa realidade", até porque, explica, "a disciplina de Matemática é aquela que mais tem sofrido alterações ao longo dos últimos anos, tanto no que concerne à metodologia de ensino como no que concerne aos conteúdos".

O professor acredita que os alunos estarão "mais preparados para enfrentar os desafios diários". "De uma análise inicial do documento das Novas Aprendizagens Essenciais de Matemática, que se encontra para discussão pública, considero que vamos deixar de ouvir tantas vezes a pergunta "Para que serve isto no nosso dia-a-dia?" e conseguirmos dar resposta a outras problemáticas, nomeadamente: Como funcionam a eleição dos nossos representantes políticos ou que métodos poderei utilizar para a eleição de um representante? Como vou gerir um orçamento familiar? Como analisar um empréstimo bancário, os impostos e ou as promoções? Como interpretar dados estatísticos?, estando previsto que o desenvolvimento destes e de outros temas ocorrerá através do desenvolvimento de trabalhos de projetos será uma mais-valia para o desenvolvimento da autonomia e da comunicação matemática dos alunos", refere.

O professor acredita que as Novas Aprendizagens "também virão amenizar o fosso que existe entre o grau de dificuldade das matemáticas (Matemática A, Matemática B e MACS) vivenciadas pelos alunos dos Cursos científico-humanísticos". Contudo, Vasco Ribeiro mostra-se preocupado com a extensão do programa. "É notória a extensão dos programas, que se agudizarão pelo facto do desenvolvimento dos trabalhos de projeto. É importante que os professores consigam dar aulas de qualidade e os alunos possam ter tempo para aprender e consolidar conteúdos", sublinha, salientando que "a implementação do programa apresentado exigirá de todos um esforço acrescido dos professores, que terão de se adaptar à utilização de novos programas no âmbito do pensamento computacional e de temas que não eram abordados até ao momento". "Assim, é imperioso que o Ministério da Educação disponibilize a formação devida aos docentes que pretendam aprofundar os seus conhecimentos nestas áreas", conclui.

- As alterações ao programa estarão em discussão até ao mês de setembro e o Novo Programa entra em vigor em 2024/2025 para o 10.º ano, alargando-se progressivamente até ao 12.º ano, no ano letivo 2026/27.

- Os temas serão mais atuais e diversificados como a Literacia Financeira (salários, impostos, descontos ou promoções); a Matemática para a Cidadania (literacia estatística e a análise de modelos financeiros); o Pensamento Computacional (desenvolvimento de práticas como a abstração, o reconhecimento de padrões, a análise e definição de algoritmos. Está prevista também a utilização do programa em linguagem Python) ou a Teoria Matemática das Eleições (ensinar a identificar quem ganha num processo eleitoral através de maioria simples e maioria absoluta).

- No que se refere à avaliação, esta não passará apenas pelos tradicionais testes, mas também por apresentações em vídeo, desenvolvimento de blogues ou apresentação de relatórios.

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