Ignacio Vázquez Moliní está à minha espera no bar do Grémio Literário, sala cheia de requinte que lhe serviu de cenário para o início do romance A Embaixada Vermelha em Lisboa, que mistura diplomacia, espionagem e política na capital portuguesa nos anos 1930. Entre as figuras que surgem nas pinturas que decoram as paredes, distingo logo Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Mas o escritor e poeta espanhol, que também é advogado e diplomata, admira entre os romancistas portugueses sobretudo Eça de Queiroz. Uma admiração profunda, de quem já leu não só o obrigatório Os Maias, mas também O Crime do Padre Amaro, A Cidade e as Serras, A Relíquia ou "essa maravilha que é O Mandarim"..Almoçamos na varanda do restaurante do Grémio, instituição que vem de meados do século XIX e que funciona só para sócios. Também abre as portas a convidados, como eu, que aceitei a recomendação feita por Vázquez Moliní de ser este um ótimo lugar para conversar. E a conversa começa pela minha busca de alguns dados biográficos deste espanhol cultíssimo que conheci, creio, numa tertúlia a celebrar o centenário do Palácio de Palhavã como Embaixada de Espanha, que reencontro em receções diplomáticas e eventos culturais e que no dia 5 lançou no Cervantes de Lisboa mais um livro, La Mirada Tranquila, que junta textos vários, cujo assunto pode ir dos cartões-de-visita aos caracóis, passando pelas ruínas de Palmira ou os Vencidos da Vida, tema tão português..Não há muito tempo li A Embaixada Vermelha em Lisboa, que fala de como Franco foi, com a cumplicidade de Salazar, cortando a água e a eletricidade a Sánchez Albornoz, tornando impossível a vida a quem representava a República Espanhola, prestes a ser derrotada na Guerra Civil. Uma surpresa a elegância da escrita de Vázquez Moliní, também o encanto dos pormenores históricos, até a ironia das piscadelas de olho, como essa personagem que dá pelo nome de Pereira, um suposto jornalista do Diário de Noticias (nos anos 1930, o nosso jornal já era septuagenário!), mas na realidade homenagem ao Afirma Pereira de António Tabucchi, um escritor italiano que amava Portugal..Nascido em Madrid em 1963, Vázquez Moliní, Nacho para os amigos ("Ignacio só a minha mãe e ...", diz, entre risos), trabalhou em Bruxelas antes de vir para Lisboa. E já anteriormente, quando estudava, teve etapas de vida no Líbano, na Tunísia e em Malta..Mudar para Portugal em 1999, após sete anos na Bélgica, foi, porém, um passo muito ponderado. Casado com Maribel, catalã, o funcionário europeu estava prestes a ser pai de gémeos, um menino e uma menina, e queria criá-los num país que juntasse as oportunidades de carreira à qualidade de vida, da segurança ao clima. A transferência para o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT, uma das duas agências europeias sediadas em Lisboa, foi decisiva para a opção da família..Num dos livros que publicou, intitulado Periplo Alfabético de Un Fumador de Pipa, existe até um capítulo dedicado à Lapa, bairro onde se instalaram os quatro, pois Álvaro e Lucía nasceram já cá, fez agora 20 anos, e as subidas e descidas das ruas íngremes com o carrinho de bebé fazem parte das memórias lisboetas mais antigas do casal Nacho e Maribel.."Já tinha estado algumas vezes em Portugal, de férias sobretudo. Mas quando cheguei para viver conhecia pouco o país. Mesmo a língua, que lia com facilidade, surpreendeu-me pelos sons, muitos deles inexistentes para os espanhóis. Ao início, parecia-me servo-croata [risos]", conta o conselheiro diplomático do OEDT, que confessa admirar a facilidade com que os portugueses percebem o espanhol..Diplomata pois, mas com posto permanente em Lisboa, Vázquez Moliní vê chegar e partir embaixadores, primeiros secretários, adidos e por aí fora. Integra um curioso grupo multinacional criado em Lisboa, que numa homenagem ao grupo jantante do século XIX que incluía Eça, se chama Vencidos da Vida Diplomática. "Os membros são diplomatas que falam espanhol, mesmo que de países de outro idioma, um por nacionalidade e nunca embaixadores", explica. Reúnem-se uma vez por mês no Círculo Eça de Queiroz, outro clube lisboeta, situado perto do Chiado tal como o Grémio..Vázquez Moliní vive hoje entre Lisboa e Almonaster La Real, terra da Andaluzia onde tem raízes e uma casa de família. Escreveu também um livro sobre a aldeia, uma espécie de história ficcionada que inclui os tempos árabes que deixaram uma mesquita cujos arcos interiores lembram os da catedral-mesquita de Córdova. Almonaster La Real foi portuguesa algumas décadas no século XIII e isso deixou marcas curiosas, por exemplo no falar. "Diz-se lá "fechadura" como em Portugal em vez de cerradura", sublinha..Homem entre duas culturas, tem também um heterónimo português, chamado Rui Vaz de Cunha, que escreve a quatro mãos, pois a Vázquez Moliní se junta Jaime Axel Ruiz. É impossível não ver aqui certa influência de Fernando Pessoa, até porque o imaginado Rui reclama parentesco com o poeta..Quando se instalou com a família em Lisboa, Vázquez Moliní conhecia bem Pessoa, que admite pode ter lido primeiro em tradução francesa quando vivia na Bélgica. Também seguia Lobo Antunes e José Saramago ("o romance fundamental para mim é O Ano da Morte de Ricardo Reis"), e começou a gostar de José Cardoso Pires, também de Cristina Norton, argentina de nascimento.."Mas Eça é a minha grande descoberta", afirma o escritor espanhol. E de tal forma foi surpreendido pelo romancista português, como ele diplomata e homem de letras, que Vázquez Moliní não hesita em descrever Eça de Queiroz como "o melhor escritor europeu do século XIX, certamente melhor do que os franceses ou ingleses, e russos, e bem melhor do que qualquer dos espanhóis"..A conversa evita a atual situação política em Espanha, afinal Vázquez Moliní é um diplomata e ainda por cima ao serviço da União Europeia, mas fica ao longo do almoço o elogio à capacidade dos portugueses de se entenderem uns com os outros e cujo resultado é esse "país pacífico, amável, com grande qualidade de vida" onde se instalou há 20 anos. Diz que existe nos espanhóis um crescente carinho por Portugal, a ponto de muitos dizerem, quando algo corre mal a Espanha, "menos mal que nos queda Portugal"..A relação com Espanha, claro, mantém-se estreita, sobretudo a nível literário. Vázquez Moliní, que é doutorado em Filologia Hispânica, destaca que é da América Latina que chega o melhor da literatura em língua espanhola, graças a nomes como o peruano Mario Vargas Llosa ou o falecido Gabriel García Márquez, colombiano. Dos clássicos espanhóis realça Miguel de Cervantes e García Lorca, este também pelo que foi a sua vida. E surpreende-me quando entre os autores contemporâneos destaca Luis Landero, escritor de Badajoz, que tem vários livros traduzidos em português e que irei descobrir em breve, na próxima ida a uma livraria..Neste último livro, La Mirada Tranquila, Vázquez Moliní dedica um dos textos ao tal grupo jantante de Eça e intitula-o Los Vencidos de la Vida. São duas páginas que terminam assim, e mantenho o espanhol:."A pesar de su diversidad, los Vencidos de la Vida fueron sobre todo, incluso dentro de su innegable histrionismo, un grupo coherente y honesto. Buscaron salidas ante problemas que parecían irresolubles y soluciones a las tensiones sociales y políticas de su tiempo. Unos propusieron proclamar cuanto antes da República. Otros, establecieron canales fluidos con el heredero al trono. Todos sabían que a Portugal no le quedaba otra salida sino transformarse profundamente para adaptarse a los nuevos tiempos.."Si en España hubiéramos tenido un grupo semejante, quién sabe si no se habrían identificado y propuesto soluciones a tiempo para superar todos esos problemas que hoy siguen amargándonos el día a día."