E se de repente lhe aparecer um motorista de TVDE que não percebe português, isso é legal?

Para conduzir um táxi é preciso dominar o português, mas a lei que regula a TVDE é omissa sobre tal obrigação. Resultado: cada vez há mais condutores que não percebem a língua do país. No Reino Unido, porém, a Uber perdeu uma longa batalha legal e a partir de setembro os motoristas terão de saber inglês.
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Já aconteceu várias vezes à economista e escritora Helena Sacadura Cabral deparar-se com um condutor de TVDE que não falava português, e não gostou. "Acho inadmissível. Na última vez recusei o serviço e reclamei forte e feio. E não paguei, claro, depois da reclamação... Só que isto resolveu o meu problema mas não resolve o de outros com menos voz."

A revelação é feita no Twitter, em resposta a uma pergunta sobre experiências semelhantes. Mas há quem diga que não se importa, até prefere que os motoristas não falem (em qualquer língua), e que caso seja preciso comunicar oralmente não há problema em usar o inglês. E quem adote a perspetiva humanista e antidiscriminatória: os imigrantes quando chegam, sem falar a língua do país, têm de ter algum tipo de trabalho. Sacadura Cabral acha que sim, mas considera que não este: "Se o motorista não fala a língua, o cliente fica à mercê do mesmo, que muitas vezes nem percebe bem o nome da rua, como aconteceu comigo. Foi de noite e pouco agradável."

Outro tuiteiro, Pedro Ramos, tem uma opinião semelhante, mas procura uma solução. "Aconteceu-me uma vez, com a Uber, em Lisboa, há menos de um mês. Não foi muito agradável, mas tentei ser solidário. Trocámos duas ou três palavras, eu disse em inglês onde era para parar. Não acho bem. O ambiente da viagem foi estranho e a comunicação, apesar de não ser uma parte importante desse trabalho, foi um incómodo. E se eu não falasse inglês? Ao menos que arranjassem um sistema de atribuição de condutores não portugueses para utilizadores não portugueses, por exemplo. Já que têm tecnologia para tudo, isso não seria tão difícil de se concretizar. E assim continuava a existir o acesso dessas pessoas à possibilidade de trabalharem ali, que é fundamental."

"Não tenho de falar português para fazer isto"

Na verdade, pelo menos na app da Uber (tal não sucede na Kapten nem na Bolt, embora geralmente partilhem os mesmos motoristas), na identificação do condutor estão descritos os idiomas dominados - sucede é que nem sempre tal corresponde à verdade.

Maria Silva pode atestá-lo. "Chamei um Uber para fazer um pequeno percurso. Era suposto estar muito perto, a dois minutos, mas nunca mais aparecia. Liguei para o motorista, para perceber onde estava, e ele não só não entendia português como eu não conseguia entender o inglês dele. Perdi imenso tempo a explicar-lhe onde estava - o GPS tinha-o mandado para um sítio errado - e quando finalmente entrei no carro perguntei-lhe se não achava que tinha de falar português para fazer este tipo de serviço. Respondeu-me que não, que bastava o GPS. Reclamei para a Uber e deram aquela resposta chapa cinco 'temos pena que tenhas tido esta experiência'. Fui ver a identificação do condutor e diz lá que ele fala português, o que é falso - o próprio aliás admitiu que não fala. Insisti com a Uber perguntando como é possível que não exista essa obrigação e não me responderam."

O DN teve a mesma sorte que Maria: a Uber levou uma semana a responder à pergunta, feita nesta segunda-feira, 10 de fevereiro, sobre qual a política da empresa nesta matéria: as respostas chegaram às 20.47 de sexta-feira 14, e limitam-se a remeter para a lei. Assim, fica-se sem perceber se a Uber tem alguma exigência em relação a domínio de idiomas - sequer se impõe que os motoristas que trabalham com a plataforma percebam a língua franca mundial, o inglês.

Mas basta ler a lei que rege a atividade de TVDE para perceber o motivo da não resposta da Uber: ao contrário da lei dos táxis, na qual está preto no branco no artigo 5º, alínea e), que para obter um certificado de motorista de táxi é necessário o candidato atestar "domínio da língua portuguesa", a legislação sobre TVDE é omissa sobre a obrigação de os condutores dominarem a língua do país onde estão a trabalhar. Aliás, no limite, se não existe qualquer requisito nesse sentido, poderão só falar esperanto, ou um dialeto esquimó: apesar de a lei especificar que têm de frequentar um curso no qual existe um módulo de "comunicação interpessoal", nada é referido sobre idiomas.

A Autoridade da Mobilidade e dos Transportes confirma: "Não existe referência expressa à formação em português ou outros idiomas, ou a necessidade de domínio da língua portuguesa, ao contrário da Lei n.º 6/2013, de 22 de janeiro, que aprova os regimes jurídicos de acesso e exercício da profissão de motorista de táxi e de certificação das respetivas entidades formadoras, estabelece como um dos requisitos para a obtenção do Certificado de Motorista de Táxi, o domínio da língua portuguesa." O mesmo reconhece o Instituto da Mobilidade e dos Transportes: "Não existem requisitos na Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (TVDE), quanto ao domínio da língua portuguesa."

"Não faz sentido não se falar a língua do país"

Quanto a queixas dirigidas à AMT, entre as seis recebidas no segundo semestre de 2018 (quando a regulamentação dos TVDE entrou em vigor) e as 116 do primeiro semestre de 2019 - não existem ainda dados sobre o segundo semestre - não houve nenhuma relativa ao não domínio do português: "Não há registo de queixas no Livro de Reclamações nesse sentido, para os TVDE."

Natural que assim seja, já que de entre todas as pessoas que admitiram, no Twitter, ter tido experiências com motoristas que não dominavam o português, poucas foram as que efetuaram sequer uma reclamação para a plataforma. Ou porque não se quiseram maçar, ou não valorizaram negativamente o facto ou porque acham que reclamar iria prejudicar o condutor. Caso de Ricardo Diogo: "Nunca reclamei para não lhes estragar a vida. Incomoda-me ainda assim pois invariavelmente enganam-se na recolha e o inglês não é percetível ao telefone. Quando chamo para recolher os meus pais é constrangedor porque estes não falam inglês."

Renato Barros, motorista TVDE, assume ao DN o espanto que ele e os outros alunos sentiram quando fizeram essa pergunta a uma das professoras do curso, em outubro. "Éramos três brasileiros e o resto portugueses, e debatemos muito isso porque achámos mal não ser obrigatório saber português. Não faz sentido nenhum num serviço deste tipo não se falar a língua do país."

A mesma opinião tem a associação de defesa dos consumidores Deco, através da porta-voz Graça Cabral, que adianta haver já algumas queixas nesse sentido, entre as 20 que a associação recebeu relativas a TVDE (recorde-se que a atividade só é regulada desde o final de 2018). "Consideramos que o uso da língua materna é básico porque é um serviço prestado por uma empresa sediada em território nacional. Se para qualquer produto vendido em Portugal tem de haver, por exigência da Lei de Defesa do Consumidor, rótulo em português - ainda há pouco tempo protestámos porque o site da Ryanair sediado em Portugal estava todo em inglês e tiveram de o mudar -, não se percebe que um serviço destes não tenha essa exigência." A hipótese que os juristas da Deco põem para a omissão legal é que "sendo uma coisa óbvia não precisa de estar expresso."

Será que é mesmo essa a explicação? Questionada, a AMT fecha-se em copas: "Quanto à razão de não existir tal referência expressa, desconhecemos o racional do legislador quanto a esta matéria." Mas adianta não ter "conhecimento de formação dada a motoristas que não seja em português, pelo que a frequência e a atribuição de certificado dependerá de compreensão da língua portuguesa". O mesmo diz o IMT: "Considerando que as formações são ministradas em português, quando identificada alguma situação que indicie que o candidato não obteve o certificado de forma regular, o IMT age nos termos legais. Os casos identificados por este instituto tiveram o acompanhamento legal devido." Mas não adianta se algum dos casos teve que ver com não domínio do português - aliás dificilmente tal poderá suceder, não existindo exigência legal.

Renato Barros confirma, as formações são em português. Mas já se deu conta de fraudes: "Há pessoas que pagam os cursos e nem vão às aulas. E há até quem alugue o certificado. É fácil, é mudar o nome e imprimir de novo."

Para obviar a esta fraude, a Uber anunciou, em dezembro, a verificação de identidade em tempo real. O processo, explica a empresa, passa pela exigência periódica aos motoristas de que se fotografem (façam uma selfie) e a enviem para a Uber para confirmação de que são a pessoa titular da conta. Se, diz o comunicado da Uber, "as imagens não corresponderem ou a verificação não for realizada, a conta será bloqueada e serão concretizadas novas investigações".

Exigência óbvia ou discriminação?

Certo é que se na maioria dos países em que as plataformas de TVDE operam não há obrigação de saber falar a língua local, a questão tem sido alvo de debate aceso, que inclui acusações de discriminação racial para quem considera que os motoristas devem ser obrigados a saber o idioma do país onde estão a trabalhar.

Nos EUA, em 2017, foi notícia o facto de uma condutora da Uber ter sido multada, em Miami, por não saber falar inglês, em contravenção de uma norma da cidade. Na altura, o departamento de transportes da mesma certificou que já tinha passado cerca de 40 multas pelo mesmo facto. A Uber protestou contra esta regra, mas a verdade é que desde 2015 que oferece em várias cidades dos EUA a opção, para os passageiros que só falam espanhol ou preferem comunicar nessa língua, a opção de chamar um motorista que a fale: é o UberESPAÑOL. A explicação para esta opção, dada pela Uber, é de que "estamos sempre a tentar encontrar formas de tornar a app mais amiga do utilizador. E para aqueles que na nossa comunidade falam espanhol, o UberESPAÑOL permite-lhes relacionarem-se com os motoristas que falam espanhol de forma a viajarem usando a linguagem da sua escolha".

Aparentemente, esta determinação da Uber de ser "amiga do utilizador" não inclui a possibilidade de este poder contar com um motorista que saiba a língua oficial do país onde trabalha. E tem mesmo lutado contra essa obrigação: no Reino Unido, envolveu-se num batalha legal contra a exigência da cidade de Londres de que os motoristas sejam obrigados a passar testes de inglês falado e escrito; o caso foi até ao Supremo Tribunal, tendo este decidido, em 2017, contra a Uber.

A partir de setembro deste ano, os motoristas TVDE de Londres serão obrigados a provar o seu domínio do idioma do país. Uma decisão saudada pelo presidente da Câmara de Londres, Sadiq Khan: "Estou muito contente com o facto de o tribunal ter caucionado os meus esforços para melhorar a segurança dos passageiros e as exigências em relação a este serviço. É vital para a segurança de que os passageiros precisam e para a qualidade do serviço que merecem que os motoristas falem inglês e percebam a informação que lhes é dada. Isto pode incluir alternativas de percurso, informações sobre uma condição médica, ou certificar que o motorista está a par dos regulamentos. Desde o meu primeiro dia na câmara quis melhorar a qualidade dos serviços e melhorar a segurança nos táxis e nos transportes privados para todos os que os usam em Londres."

A portuguesa Rita Rodrigues não podia estar mais de acordo: numa noite de sexta-feira em fevereiro, em Lisboa, chamou um Uber para ir com duas amigas a uma festa. Quando este chegou dirigiu-se-lhes em inglês. Uma delas comentou, em português, que era o segundo motorista da Uber que apanhava naquele dia que não falava português e que achava mal que tal fosse possível. O condutor exaltou-se, asseverando, num português muito deficiente, que falava sim português, passando a, em inglês e em tom ameaçador, exigir que se mantivessem em silêncio no automóvel e acusando-as de estarem "drunk" (bêbadas). A discussão quase chegou a vias de facto. Foi feita reclamação para a Uber, que se limitou a devolver o valor da viagem, não dando qualquer outra satisfação em relação às consequências, para o motorista, do seu comportamento agressivo.

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