E se a solução for um medicamento que já existe para outra doença?

Cientistas e laboratórios estão a testar drogas contra outras doenças virais. A cloroquina, utilizada na malária, é uma das candidatas que até já tem dados promissores. Se houver resultados positivos nos ensaios clínicos, poderemos estar a poucos meses de ter uma primeira arma eficaz contra o covid-19
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Com a pandemia a ganhar velocidade apesar do fecho de fronteiras, do isolamento de cada vez maior número de países e de restrições sociais sem paralelo em tempo de paz a ocorrerem um pouco por todo o mundo, cientistas e laboratórios estão numa corrida contra o tempo, em busca de soluções para combater o covid-19, que ainda não tem qualquer tratamento ou vacina disponíveis.

Enquanto esta última não chega - as previsões mais otimistas apontam para 12 a 18 meses para se lá chegar - as maiores esperanças concentram-se em drogas que já são usadas na prática clínica contra outras doenças, como o VIH/sida, ou a malária. Em relação a esta última, há mesmo dados promissores de um estudo realizado em França, em que um pequeno grupo de 20 doentes tratados com cloroquina, ficaram sem carga viral ao fim de poucos dias.

Procurar entre as drogas já usadas poderá mesmo ser o caminho mais rápido e direto para se obter uma primeira arma eficaz contra o novo coronavírus, porque as moléculas utilizadas na prática clínica já passaram pelos testes de segurança para uso humano, que são sempre muito morosos.

Se algum dos ensaios clínicos já em curso, ou entretanto a iniciar-se, com medicamentos que já estão a ser usados para doenças como VIH/sida, ébola, malária, ou outras, obtiver bons resultados comprovadamente robustos, poderemos estar a poucos meses de uma primeira arma eficaz contra o novo coronavírus.

"Desenvolver um novo medicamento é um processo muito lento, que pode levar em média 10 anos. Por isso, o que se faz nestas circunstâncias é testar medicamentos já usados na prática clínica para outros vírus que possam ter semelhanças estruturais", explica ao DN o bioquímico Miguel Castanho que lidera o grupo de Bioquímica do Desenvolvimento de Fármacos e Alvos Terapêuticos no Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, da Universidade de Lisboa.

"A partir dessa homologia de estruturas entre os vírus, testam-se os medicamentos disponíveis, para verificar se eles podem ser pelo menos parcialmente eficazes, o que é sempre melhor do que não dispor de nada. A minha estimativa é que possa haver resultados dentro de quatro a seis meses", sublinha o investigador.

É preciso esperar, portanto, sendo certo que há de haver desilusões pelo caminho, como a que acaba de ser conhecida através de um estudo publicado no The New England Journal of Medicine, no qual se dá conta de que a administração combinada de duas drogas contra o VIH (o lopinavir e o ritonavir), de nome Kaletra, não obteve benefícios em doentes graves infetados com o novo coronavírus, num dos ensaios clínicos já realizados.

Os testes, que foram feitos na China, envolveram 199 adultos entre os 48 e os 68 anos que estavam hospitalizados na cidade de Wuhan, em situação grave. Metade do grupo recebeu tratamento com a combinação das duas moléculas para o tratamento do VIH, mas não foram observadas diferenças em relação ao grupo que recebeu apenas o tratamento para os sintomas.

Uma droga contra a gripe

Entretanto, um primeiro resultado promissor chegou esta quarta-feira, também da China, com o anúncio por parte das autoridades de saúde daquele país de bons resultados no tratamento de doentes com o Sars-cov-2 com uma nova droga desenvolvida no Japão, chamada favipiravir, destinada ao tratamento de novas estirpes do vírus da gripe.

De acordo com Zhang Xinmin, do gabinete do ministro chinês da ciência e tecnologia, citado esta quarta-feira no The Guardian, um ensaio clínico em doentes com covid-19 de Wuhan e de Shenzen mostrou que o favipiravir "tem um alto grau de segurança e é claramente eficaz no tratamento [do SARS-cov-2]".

Os doentes tratados com a nova droga deixaram em média de testar positivo para a presença do vírus ao fim de quatro dias de tratamento com aquela molécula, em comparação com doentes que recuperaram da doença mas que não a tomaram, e que só ao fim de 11 dias deixaram de apresentar carga viral.

A par disso, as radiografias ao tórax dos doentes mostraram melhorias em 91% dos casos tratados com a nova droga, em comparação com apenas 62% no grupo que recuperou, mas sem aquele tratamento.

No Japão, segundo o The Guardian, os médicos também estão a usar a mesma droga em doentes com covid-19 para tentar evitar que o vírus se replique em grande quantidade, mas os dados parecem sugerir que ela não é eficaz nos casos mais graves.

"Administrámos Avigan [o nome comercial do medicamento] em 70 a 80 doentes, mas ele não parece funcionar muito bem quando o vírus já se multiplicou muito", afirmou uma fonte do ministério da saúde do Japão, citada no diário britânico.

Aprovada para o tratamento da gripe, a molécula favipiravir interfere com a capacidade de o novo coronavírus se replicar no interior das células, impedindo assim a progressão da infeção.

Com o anúncio dos resultados pelas autoridades de saúde chinesas, as ações da empresa japonesa que produz o Avigan, a Fujifilm Toyama Chemical, subiram esta quarta-feira 14%. A empresa, no entanto, escusou-se a comentar os dados do ensaio clínico feito na China.

Ainda vai ser preciso esperar algum tempo para perceber que papel poderá ter que o favipiravir no contexto desta pandemia.

A oportunidade perdida do Sars-cov-1

O novo medicamento para a gripe da farmacêutica japonesa não é, no entanto, o único que a comunidade médica e científica está a testar em doentes com o covid-19 - há dezenas de ensaios clínicos a decorrer em vários países com diferentes drogas antivirais e até a cloroquina, uma velha conhecida da medicina tropical para tratar a malária, tem aqui lugar.

Uma das moléculas em que muitos apostam, incluindo peritos da OMS, como uma possível solução contra o novo coronavírus é, entretanto, a remdesivir, que foi desenvolvida há mais de uma década pela farmacêutica Gilead e que mostrou alguma eficácia em estudos laboratoriais contra os coronavírus na origem das epidemias de SARS e de MERS - a primeira eclodiu em 2002 (também na China) e estendeu-se a 26 países, causando mais de oito mil doentes, dos quais quase 800 morreram; a segunda surgiu no Médio Oriente em 2013 e desde então infetou quase 2500 pessoas, causando a morte a 858.

Os estudos que deveriam ter-se seguido para avaliar o efeito da remdesivir em doentes infetados com os dois coronavírus (o SARS-cov-1 e o MERS-cov) acabaram no entanto por não prosseguir, e não apenas por falta de doentes, uma vez que a MERS continua ativa no Médio Oriente, embora com baixa intensidade - é uma doença pouco contagiosa. A verdade é que o interesse público por aquelas infeções se extinguiu, quando elas deixaram de ser percebidas como uma ameaça.

"Acabou por não ser desenvolvido nenhum medicamento ou vacina para o primeiro vírus Sars-cov [o que provocou a epidemia de SARS na primeira década do milénio] porque o investimento que estava a ser feito caiu", explica o investigador Miguel Castanho. "Se se tivesse continuado, agora estaríamos em muito melhores condições para combater o novo coronavírus", garante o investigador - o SARS-cov-2 é geneticamente idêntico ao primeiro em cerca de 80%.

Na altura, aliás, o grupo de Miguel Castanho, em colaboração com uma equipa de investigação da China, testou no SARS-cov-1 algumas moléculas usadas contra a infeção por VIH. Os resultados foram publicados em 2006, na ScienceDirect do grupo Elsevier.

"Verificámos que havia alguma ligação entre essas moléculas e o Sars-cov, mas ela não era suficientemente forte para levar à inativação do vírus", conta Miguel Castanho.

Teria sido necessário continuar a investigação - a do seu grupo e a de todos os outros que na altura estavam a trabalhar sobre esse primeiro coronavírus SARS-cov, mas a continuidade acabou por perder-se por falta de financiamento.

Em cima do acontecimento, com a epidemia a alastrar e as mortes a somarem-se, esse trabalho está agora a ser feito ao arrasto da própria pandemia. Obter rapidamente resultados acabará por ser a diferença entre a vida e a morte para muitos doentes.

Entretanto, o remdesivir, que se mostrou ineficaz contra o ébola, mas já tinha revelado potencial nos outros dois coronavírus, pode vir a ser uma resposta contra o SARS-cov-2. Há já vários ensaios clínicos a decorrer e em alguns doentes nos Estados Unidos ele revelou resultados positivos. Mas vai ser preciso esperar mais alguns meses para se montarem ensaios clínicos mais vastos, que poderão dar uma resposta definitiva.

Uma velha conhecida da medicina tropical

Apesar dos resultados agora publicados na revista The New England Journal of Medicine dando conta de que que as duas moléculas que entram na composição do Kaletra, para o tratamento VIH, não obtiveram uma boa resposta no ensaio clínico realizado com doentes graves de Wuhan, há outros grupos a preparar novos ensaios clínicos com essas mesmas drogas para verificar aqueles resultados.

De acordo com a imprensa internacional, a empresa que produz este medicamento está a desenhar um ensaio clínico nesse sentido, ressalvando no entanto que mantém a monitorização sobre o seu stock do medicamento para garantir que ele não faltará aos doentes com HIV, em caso de uma maior procura no contexto da covid-19.

Outra possibilidade que está também já em estudo é a utilização da cloroquina, uma velha conhecida dos especialistas em medicina tropical para o tratamento da malária.

Um estudo preliminar feito em França, com 24 doentes infetados com o novo coronavírus, obteve "resultados promissores" nas palavras de Didier Raoult, o diretor do hospital de Marselha onde o estudo foi feito. Segundo o médico, citado na revista francesa Science et Avenir, três quartos dos doentes tratados com cloroquina não apresentavam rasto do vírus seis dias depois, ao passo que 90% dos que não receberam o tratamento continuam mantinham a presença do vírus no organismo no mesmo período.

A investigadora em malária Joana Tavares, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto, considera que, apesar do" número reduzido" de doentes envolvidos no estudo, os dados são importantes, face ao momento que se vive no mundo.

Olhando os resultados, a investigadora assinala que numa parte dos doentes, que além da cloroquina receberam também um medicamento chamado azitromicina (que é normalmente administrada para prevenir infeções severas do trato respiratório em pacientes com infeções virais), "a eficácia do tratamento na eliminação do vírus foi de 100%".

Face a estes resultados considerados espetaculares, as autoridades francesas vão agora alargar a outros hospitais e a mais doentes a administração de cloroquina, sempre em contexto de ensaios clínicos, para que os dados obtidos possam fornecer conclusões robustas.

Entretanto, os resultados de um estudo in vitro publicados esta quarta-feira online na revista Nature , mostraram que esta droga consegue sabotar a ligação do SARS-cov-2, com o respetivo recetor nas células, o que é um bom prenúncio para todos os ensaios clínicos que vão agora seguir-se com este medicamento usado há décadas contra a malária.

Aqui, tal como em todos os outros casos, vai ser preciso, no entanto, esperar, para se perceber se este tratamento pode mesmo funcionar. Uma certeza existe: a de que o mundo aguarda com ansiedade por todos esses resultados.

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