Nos dez anos que passou em Harvard, para onde foi inicialmente fazer o seu pós-doutoramento e onde se estabeleceu como membro da Faculdade de Medicina, Miguel Soares viveu um daqueles "momentos eureka" que marcam os avanços da ciência - e, no caso, a carreira científica deste investigador nascido na Bélgica nos anos 1960, filho de uma das mais conhecidas artistas portuguesas da sua geração (a atriz Lídia Franco) e que desde 2004 dirige o seu próprio laboratório no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras. Aqui, Miguel avança no caminho destapado em Harvard e vai decifrando os segredos de algo tão ou mais importante do que o sistema imunitário na resposta do corpo humano às infeções: o nosso "sistema metabólico"..Na prestigiada universidade norte-americana, Miguel trabalhava com Fritz H. Bach, descendente de uma família judia austríaca que escapou ao nazismo na II Guerra Mundial e se tornou um dos cientistas pioneiros no campo da imunologia de transplantes. Trabalhava, portanto, "em transplantes de órgãos" quando se deparou com a tal descoberta transformadora. "Apercebemo-nos de que os órgãos transplantados, para não serem rejeitados pelo sistema imunitário, tinham de ativar um mecanismo de defesa. No fundo, o órgão tinha de expressar genes - informação contida no nosso genoma - que o ajudavam a funcionar e que não deixavam que o sistema imune o rejeitasse", recorda o investigador..Entre esses genes, "havia um fenomenal, que se chama heme-oxigenase-1", ou HO-1. A particularidade desse gene, descobriu a equipa, era codificar uma proteína que produz um gás chamado monóxido de carbono. O que justifica a famosa expressão de descoberta atribuída ao matemático grego Arquimedes de Siracusa: eureka! "Descobrimos que a produção de monóxido de carbono era essencial para manter o órgão a funcionar.".CitaçãocitacaoQuando somos infetados, o sistema imunitário está a combater o agente patogénico, mas os órgãos vitais têm de continuar a funcionar, senão de nada serve eliminar o patógeno..A partir daí, abriu-se um mundo de novas vias a explorar que Miguel Soares vai percorrendo hoje em dia, com o epicentro numa ideia que pode revolucionar a forma como combatemos as infeções, sejam elas provocadas por vírus, bactérias ou parasitas, desde a covid-19 à malária ou à sépsis, a infeção generalizada que é uma das principais causas de morte em todo o mundo e sobre a qual o investigador tem vários estudos publicados..No fundo, o que Miguel vem demonstrando ao longo dos últimos anos é que esse sistema metabólico, ou seja, a capacidade dos vários órgãos em reprogramar o seu metabolismo na forma como reagem perante determinadas agressões, pode ser tão ou mais importante do que o sistema imunitário na altura de decidir quem sobrevive ou não a essas doenças..Tal como aconteceu com os corações e outros órgãos transplantados em Harvard, também na resposta às infeções parece ser fundamental a capacidade dos diversos órgãos em adaptarem o seu metabolismo, o seu modo de funcionamento, à ação do sistema imunitário. "Mais do que a capacidade de matar o patógeno (ou agente infeccioso), o segredo parece estar na tolerância ao mesmo", numa espécie de habilidade diplomática para negociarmos com o "invasor" uma forma de convivência em comum.."Em termos mais práticos: nós temos os chamados órgãos vitais, o cérebro, coração, os rins, o fígado... Quando somos infetados, o sistema imunitário está a combater o agente patogénico, mas os órgãos vitais têm de continuar a funcionar. Se não conseguirem continuar a funcionar, não serve de nada eliminar o patógeno, porque nós morremos. E o que temos vindo a descobrir é que esses órgãos têm de adaptar-se ao que chamamos de stress causado pela infeção e fazer um processo de damage control. Este controlo de danos, para usar uma analogia naval, é tudo o que temos de fazer numa situação de emergência para o barco não afundar. É um SOS. O corpo para de fazer tudo o que é supérfluo para se concentrar no que é essencial", explica. "A adaptação metabólica é isto.".Essa ligação entre a reação aos transplantes e às infeções, como quase sempre acontece na ciência, foi sendo construída peça a peça, como um puzzle. "O que pensámos foi que se este mecanismo de reprogramação metabólica dos órgãos evoluiu ao longo de milhares de anos com o corpo humano, haveria de ter outro motivo que não os transplantes, que são uma coisa recente. Então apercebemo-nos de que onde isto tem mesmo relevância é nas infeções", explica Miguel Soares..CitaçãocitacaoOs órgãos têm de se adaptar ao stress causado pela infeção e fazer um controlo de danos. Numa analogia naval, é o que temos de fazer numa emergência para o barco não afundar..Mais: o heme-oxigenase 1, o tal gene que leva à produção de monóxido de carbono, não era o único com capacidade para influir nesta reprogramação metabólica. O investigador percebeu que "há uma rede, uma espécie de máfia de genes" que atua em vários órgãos para regular o metabolismo do indivíduo infetado. Na sépsis, por exemplo, a que Miguel Soares tem dedicado muitos anos de investigação, "há uma série de genes que são altamente induzidos (aumentam a sua expressão) em reposta ao choque sético"..Ora, utilizando modelos experimentais baseados no uso de murganhos (vulgo ratinhos), podemos analisar a expressão genética quase em tempo real nos vários órgãos, e através de manipulações genéticas "consegue-se testar funcionalmente se a expressão de um determinado gene é essencial para, por exemplo, o coração deixar de bater durante o choque sético". E isso, diz, "é um game changer". Um dado revolucionário que pode abrir portas a novas terapêuticas "que não se preocupem só em eliminar o patógeno como também em tratar este outro mecanismo de defesa que nos permite, no fundo, sobreviver", refere..A sensação de descoberta na ciência pode ser "esmagadora", como recorda o investigador, desfiando o novelo que foi construindo. "Como é que quase independentemente do sistema imunitário há um outro sistema que decide se vivemos ou morremos? Há de ser importante, tem de ter relevância clínica." Foi esse o mote para avançar na procura dos segredos que se escondem por detrás deste sistema metabólico e que podem acrescentar ferramentas preciosas ao nosso kit de sobrevivência.."Durante muito tempo pensou-se que a forma de lidar com os microrganismos era tentar eliminá-los, mas às vezes não funciona", diz. "A função do sistema imunitário é sentir a presença de patogénicos e matá-los, eliminá-los. E funciona às mil maravilhas. Tirando em alguns casos", sublinha o cientista, apontando exemplos como "a sépsis, a malária severa ou agora a covid-19, em que já percebemos que, nas pessoas que passam para as urgências e constituem casos graves, o problema delas não é tanto o vírus mas a resposta do sistema imunitário e o seu impacto no metabolismo"..Ou seja, frisa Miguel Soares, "a capacidade de a pessoa infetada sobreviver pode não ter uma relação direta com a capacidade de eliminar o agente patogénico". Mesmo que o sistema imunitário funcione, reconheça o agressor e produza anticorpos contra ele, o doente pode morrer nesse processo, caso a resposta imune afete o funcionamento metabólico dos órgãos tanto ou mais do que afeta o microrganismo invasor. O que realça a importância dessa via alternativa explorada pelo investigador do IGC, cujo trabalho sobre a "reprogramação metabólica como estratégia de defesa contra doenças infecciosas" já foi reconhecido e premiado por várias entidades nacionais e internacionais, desde a Fundação para a Ciência e Tecnologia à Fundação La Caixa, passando pelas prestigiadas bolsas ERC Advanced Grants, do Conselho Europeu de Investigação, e até pela Fundação Bill e Melinda Gates, além da própria Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Oeiras..Ideia-base de todo o ecossistema de investigação liderado por Miguel Che Soares é a da tolerância à doença, conceito fundamental, de resto, do processo evolutivo das espécies. "Se nós formos completamente tolerantes a um patógeno, ele já não é um patógeno, não provoca doença. E isto tem que ver com os processos evolutivos", diz, recorrendo ao exemplo mais atual. "Isto não é como um filme mau de Hollywood. O vírus não nasceu em Marte, quer ser mau e vem atacar-nos. O agente patogénico, neste caso o SARS-CoV-2, o que quer é sobreviver. Ele já estava entre nós há muito tempo, mas estava lá adormecido nos morcegos, algures, porque os morcegos são tolerantes a este e outros vírus da família dos coronavírus, a eles não lhes causa nenhum transtorno. Ou seja, para o morcego ele não é verdadeiramente um patógeno. Evoluíram em conjunto (coevoluíram) e encontraram ali um equilíbrio. Se calhar o morcego até vive menos uns meses, deve haver um "preço" qualquer que ele "paga", mas chegaram a um acordo bom. Connosco ainda não chegou a acordo, porque nós nunca coevoluímos juntos", ilustra..CitaçãocitacaoNuma septicemia, o metabolismo do nosso corpo reorganiza-se de forma a ser o fígado a fornecer a glicose necessária. Os doentes que morrem têm problemas de glicemia: ou glicose a mais ou glicose a menos..A ideia de um estado de tolerância à doença começou a desenhar-se ainda em meados do século XIX, num estudo australiano sobre... trigo: "Eles estavam interessados em ter variedades de trigo que dessem mais sementes e aperceberam-se de que, quando infetadas, com a mesma infeção, havia umas subespécies que davam mais sementes, mais trigo, do que as outras. E chamaram a isso a tolerância à doença." Ora, a planta não tem, que se saiba, sistema imunitário clássico. "Tem um outro sistema de defesa contra a infeção que faz que, mesmo estando infetada, consiga viver com ela. É resiliência, tolerância." Durante muitos anos pensou-se que isso era um fenómeno exclusivo das plantas, até se perceber que acontecia também com os mamíferos..Mais uma vez, a pandemia atual é um bom cenário para ilustrar este dilema entre infeção e doença. "Na covid-19, porque é que algumas pessoas têm o vírus mas não têm a doença? Porque têm tolerância ao vírus. As crianças são o melhor exemplo. São quase completamente tolerantes ao vírus", explica Miguel. E a diferença, diz, não está na carga viral: "Quando se vai aos pulmões delas e se vê a carga viral que têm, é semelhante à dos idosos que morrem. Mas o organismo da criança reage de maneira completamente diferente a este insulto que é ter aquele vírus. Por isso, um morre (o idoso), o outro (criança) quase nem dá por ela.", explica..Na história, de resto, tínhamos já um famoso exemplo em "Typhoyd Mary" (Maria Tifoide), uma cozinheira irlandesa a trabalhar para famílias abastadas na Nova Iorque do início do século XX: "Na altura, surtos de febre tifoide infetaram dezenas de pessoas, e mataram mesmo algumas, e ninguém percebia o que se passava. O elo comum era a Typhoyd Mary. O que é que aconteceu? Ela era completamente tolerante à bactéria salmonela. Era portadora, não desenvolvia a doença, mas infetava. Era uma doente assintomática, como acontece agora com vários infetados na covid-19." A cozinheira Mary Mallon foi mesmo condenada a viver em quarentena forçada durante os últimos 23 anos da sua vida..Os caminhos destapados por Miguel Soares nesta via metabólica já lhe valeram avanços importantes na compreensão de doenças como a malária ou a septicemia. Quando chegou a Portugal, em meados da década de 2000, para liderar um laboratório no Instituto Gulbenkian de Ciência, estabeleceu uma colaboração com a sua colega Maria Mota que também liderava um grupo no IGC, cientista reconhecida mundialmente pelo seu trabalho com malária, e decidiram experimentar se o gene que leva à produção de monóxido de carbono teria na malária cerebral, que tem elevada taxa de mortalidade entre as crianças, o mesmo efeito protetor verificado nos transplantes de órgãos em Harvard..CitaçãocitacaoPassou-se de uma fase em que o problema era o agente infeccioso para outra em que era a resposta exacerbada do sistema imunitário e agora pensamos que a chave está no metabolismo.."Parecia evidente que nós não teríamos um gene, partilhado por todos os animais e todos os organismos, por ele ter um papel na proteção de transplantes. Tinha de haver ali qualquer coisa antes. Esse gene tem de ter uma função primordial para algo sem o qual nós não estaríamos aqui hoje", recorda. "E bingo: todos os animais colocados nos aquários com monóxido de carbono a muita baixa concentração sobreviviam e os que ficavam cá fora morriam de malária cerebral.".Miguel avançou então para a sépsis, à qual passou a dedicar grande parte da sua atenção. Considerada "o cemitério da indústria farmacêutica", diz o investigador, pelos investimentos avultados sem retorno significativo até aqui, a sépsis é "um assassino silencioso" considerado responsável por até 20% de todas as mortes no mundo. Anualmente, segundo a OMS, são no mínimo 11 milhões de fatalidades atribuídas a esta doença infecciosa (sendo uma estimativa muto conservadora) e que resulta na falência generalizada de órgãos como consequência de uma resposta desregulada à infeção..Na sépsis, "o mesmo sistema é importante, mas não é pelo monóxido de carbono. A heme-oxigenase-1 o que faz é agarrar num pedacinho de ferro que vem dentro de um anel chamado heme e libertar além do monóxido de carbono, um átomo de ferro, cortando esse anel. Apercebemo-nos então de que este ferro tem de ser guardado por uma outra proteína que se chama ferritina e descobrimos que a ferritina é absolutamente essencial para nos protegermos da sépsis", descreve. "E agora entramos no metabolismo. Quando não se conseguia guardar o ferro, a glicose descia e os ratinhos ficavam com hipoglicemia. Assim, descobrimos que este metabolismo do ferro regula o metabolismo da glicose, revelando que as duas vias metabólicas estão intimamente ligadas", acrescenta Miguel. "Logo, tem de haver aqui uma adaptação metabólica." Ou seja, "temos de adaptar o metabolismo do ferro para regular outras vias metabólicas, neste caso o metabolismo da glicose, que é essencial para manter os órgãos vitais a funcionar, neste caso o cérebro.".Durante uma septicemia, o metabolismo do nosso corpo reorganiza-se de forma a ser o fígado a fornecer a glicose necessária. Os doentes que morrem têm problemas de glicemia: uns têm glicose a mais, outros a menos. "Estes mecanismos que regulam a capacidade de o fígado produzir glicose são essenciais: não para matar o microrganismo, mas para fazer que os vários órgãos vitais possam continuar a funcionar", diz Miguel Soares. "E este equilíbrio metabólico é importantíssimo. É precisamente isto que estamos a descobrir", refere o investigador, cuja equipa está a estudar a tal rede de genes associados a essa reprogramação metabólica de forma a ser possível desenvolver novas estratégias terapêuticas focadas na prevenção da falência de órgãos. "Estamos a tentar perceber como é que os órgãos se organizam para manter níveis de glicose adequados para que a pessoa sobreviva à infeção, mas sem deixar que os microrganismos também utilizem também essa glicose para se reproduzirem. Esse é o truque.".Esta abordagem, totalmente disruptiva em relação à forma como se olha para a resposta à infeção, abre uma nova era. "Passou-se de uma fase em que o problema era o microrganismo invasor para outra em que o problema passou a ser a resposta imunológica exacerbada, e agora estamos a entrar numa nova fase em que achamos que o verdadeiro problema está no metabolismo dos órgãos", descreve o investigador. E isto, diz, "é uma revolução na maneira de aproximar esta temática". Uma nova forma de abordar o combate às infeções que ganha importância acrescida face a um "dos maiores problemas atuais da humanidade": a crescente resistência aos antibióticos..Esta via metabólica abre "uma caixa de Pandora maravilhosa" que permite então alargar horizontes terapêuticos. Ou assim espera o investigador. A ele cabe-lhe esta investigação fundamental, "a escrita do código", para que outros, dedicados à ciência translacional e à ciência aplicada, possam explorar essas vias terapêuticas. "É como acontece agora com as vacinas revolucionárias de ARN mensageiro contra a covid-19. Se nos anos 60 do século passado os cientistas Sydney Brenner (ex-presidente do conselho consultivo do Instituto Gulbenkian de Ciência) e Francis Crick (ambos prémios Nobel) não tivessem aberto as portas para a descoberta de uma coisa chamada ARN mensageiro e para o que poderia servir, hoje não teria sido possível termos estas vacinas que protegem a humanidade", ilustra.."O que eu adorava é que aquilo que descobrimos para os órgãos, para a malária, para a sépsis, pudesse beneficiar a humanidade. Esse é o sonho de qualquer cientista. O que nós encontrámos é tão forte, tão dramático, sobrevive-se ou morre-se, que acho que não pode ser ignorado", diz Miguel Soares, o "estrangeirado" (nascido na Bélgica, onde viveu 14 anos antes de ir para Harvard durante outros dez) de nome revolucionário (Che, homenagem dos pais ao revolucionário argentino) que espera poder estar a contribuir para um avanço importante na ciência. "Se no meu epitáfio pudesse ter lá escrito qualquer coisa como "descobriu como é que isso funciona", ou "sem ele se calhar não teria havido a cura para a sépsis", isso era brutal", admite..rui.frias@dn.pt.Este texto faz parte de uma série de reportagens sobre ciência que o DN publica em agosto.