E se?
Há muitos anos, um dos melhores professores que tive (e tive muitos), o crítico de arte Rui Mário Gonçalves, contava um lendário episódio com uma pintura de Fernand Léger, que com Picasso inventou o cubismo. O quadro terá sido colocado no cimo da escadaria de entrada de uma fábrica e, durante meses, os operários troçaram, riram, desdenharam daquele coiso sem pés nem cabeça que estava a meio da grande escadaria que dava ao seu local de trabalho, onde iriam passar o dia a fazer as coisas mecânicas que os operários fazem. Ainda por cima, naquele tempo Léger já nem era cubista, agora virara "tubista", porque aquilo eram figuras meio em forma de tubo - meio mecânicas, reconheça-se.
Um dia, retiraram o quadro. Aí (contava Rui Mário Gonçalves com um sorriso deliciado) os operários voltaram a protestar - desta feita por que a pintura fosse embora!
"Mas vocês não gostavam dela..."
"Ah... Aprendemos a gostar."
A história do "primeiro estranha-se, depois entranha-se" é mesmo verdade. E lembro-me desta história a propósito do busto de Ronaldo. A ser verdade que houve um primeiro, e que Ronaldo o achou demasiado sério.
(Um deus do estádio que por acaso até tem corpo e rosto de deus do estádio a manifestar algum pudor em ter um busto de bronze que o exiba como deus pagão... merece que lhe tiremos o chapéu, sr. Cristiano!)
E, a ser também verdade que Ronaldo aprovou e sancionou este busto gozão, que quase o torna parecido com o traquinas emblema da revista Mad, que o tira literalmente do sério (porque os poetas sabem que o sério só faz sentido depois da vida), então quem somos nós para não aceitarmos e aprovarmos - depois de passada a catarse da troça - e acharmos que, sim, é mesmo adequado e indiciador de um país livre, com uma ilha linda que recebe os turistas não com a solenidade anacrónica do "Welcome à Terra de Dom Importante", antes um sonoro:
"Bem-vindos à ilha da Madeira
que tem muito que contar
onde há muito que folgar
e ride como o nosso craque
pois há muito que folgar"?
Escritor