E o vírus chegou e disse: vão para casa pensar na vida!

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A mão na mão. A mão mais jovem a apertar a mão engelhada. Do início ao final dos dedos, do início ao final dos dedos, outra vez, numa massagem a imitar a respiração, como um prender à vida. A mulher deitada, quase desacordada na cama do hospital de Huesca. Olhos encovados. Mas a mulher de pé tem um sorriso que se vê por detrás da máscara. Está junto da mãe, Encarnação - como se houvesse nome melhor para alguém que, aos 101 anos, resistiu ao covid-19. A filha, contente, junto da sua velha resistente e curada, nas imagens da televisão espanhola.

Não idosa, não: velha. Os nossos velhos, devíamos chamar-lhes assim. Chamar-lhes assim, velhos, em vez de os desprezar, dá-lhes valor. E agora são nossos, tomamos conta deles. Quem não tem os seus? Tê-los é uma felicidade destes tempos de extensão da vitalidade e da própria vida, as gerações cruzam-se como talvez nunca mais aconteça. E se não pensámos muito nisso, talvez esta seja uma boa altura para começar a perceber o que estamos a perder - também - quando os atiramos para a solidão de apartamentos em prédios altos, para o amontoado de determinados "lares", palavra tantas vezes mal utilizada quando se trata de autênticos repositórios.

Para já, protegemos os nossos "mais velhos", como dizem, bem, algumas formas de falar português. Lá chegaremos, como dizia Maria João Valente Rosa, numa entrevista ao DN: "Os velhos de hoje são diferentes dos do passado e os do futuro serão diferentes dos de hoje. Os do futuro, que são os que hoje estão preocupados com os seus pais e avós por causa desta pandemia, serão ainda mais qualificados, mais próximos das novas tecnologias, mais conectados e terão uma esperança de vida maior. Podemos permitir-nos ser cidadãos plenos em todas as idades."

Como sociedade, diz bastante de nós e de como aqui chegámos que estejamos dispostos a colocar tanto em causa, uns pelos outros... e sobretudo por eles. É um laivo de esperança. O silêncio das ruas pela vida dos outros. A economia em pantanas pela saúde de todos. O bem comum e interdependente. E já esquecemos, até, uns arremedos de pensamentos que começaram a formar-se na opinião pública - terá sido por serem os velhos as principais vítimas que tantos se atreveram a vir questionar as medidas "demasiado" restritivas, danosas à economia? Foram de imediato calados pela realidade, mas não quer dizer que não voltem.

Não, Presidente Ramalho Eanes, nós não queremos que sacrifique os seus sábios 85 anos, dando um ventilador a outros, mais novos ou com mais vida pela frente. Não queremos perceber que lógica teria esse algoritmo que escolhe uma vida em detrimento da outra. Queremos que o Serviço Nacional de Saúde o proteja - e a todos. Queremos dar-lhe tempo para que o possa fazer, sem ter de enfrentar esses dilemas éticos.

Quando deixamos de nos aborrecer por estar em casa, e nos deitamos a pensar, percebemos que se há coisa interessante que este coronavírus tem é isso mesmo, pôr-nos a pensar sobre tantas coisas, individual e coletivamente. Até parece desenhado por um demiurgo irónico - não maléfico, mas problemático e questionante. Uma espécie de espelho gigante que se colocou à nossa frente.

Além dos nossos velhos, os abraços que não demos. As festas a que não fomos. Os amigos que não vimos. O demasiado tempo que passámos nas redes sociais. O quanto relegámos o bem comum para segundo plano. A guerra entre o Serviço Nacional de Saúde e o privado. Que é que é isso das PPP, alguém se lembra? O desprezo a que votámos os que não conseguiram ser bem-sucedidos, nessa ditadura da meritocracia que vinha tomando conta das sociedades, como se nada mais houvesse. Até o tão famoso mindfulness, como se tudo nas nossas vidas se resolvesse com uma introspeção. O ambiente, numa crise irresolúvel, até porque, e tal, não podíamos dar cabo da economia para salvar o nosso ar.

Tomem, disse-nos o vírus, como fazendo um manguito: vão lá para vossas casas pensar nisto. Nesta semana, na RTP, o virologista Pedro Simas falava de vírus como se fossem seres vivos, e dava-lhes determinadas características antropomórficas - com a familiaridade ganha em anos a lidar com eles no Instituto de Medicina Molecular. E talvez ele tenha razão, e seja assim mais fácil percebê-lo e combatê-lo.

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