E o exemplo da pandemia no Chile aqui tão perto...

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O escritor Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), mais conhecido por Mark Twain, quando confrontado com o seu próprio obituário terá afirmado para a posteridade que: as notícias da sua morte eram manifestamente exageradas. Pois também as notícias do fim da pandemia são manifestamente exageradas. Vejamos porquê.

Um bom exemplo é fornecido pela situação pandémica vivida no Chile. Recorde-se, um país da América do Sul com quase 20 milhões de habitantes, mais de 6.000 quilómetros de costa com o oceano Pacífico e um produto interno bruto per capita estimado, em 2020, de USD 14.650.

No início do presente mês de Maio a média a sete dias dos novos casos no Chile por milhão de habitantes mantinha-se nos lugares cimeiros a nível mundial e a par da situação catastrófica vivida na Índia e no Brasil (ourworldindata.org). Porém com uma diferença não despicienda de interesse: quase 45% da população chilena já tinha recebido uma dose de vacina contra a COVID-19, colocando o Chile nos primeiros 5 lugares de cobertura vacinal no plano mundial e configurando o país como um exemplo de sucesso. Como, então, explicar e compreender esta realidade e sobretudo aprender para não replicar erros alheios?

Em termos sintéticos esta situação de consequências nefastas resultou da aziaga conjugação de vários factores em simultaneidade e num mesmo local, o Chile. A saber: (i) a vacina escolhida, (ii) o abandono das medidas de prevenção e (iii) a variante dominante em circulação no país.

O Chile foi célere no que toca à decisão de vacinar a sua população, tendo adquirido vastas quantidades da vacina chinesa CoronaVac produzida que é pela Sinovac, vacina essa não licenciada para o mercado europeu e norte-americano, não sujeita ao escrutínio das principais agências mundiais de medicamentos, nomeadamente a EMA (European Medicines Agency) e a FDA (Food and Drug Administration) e não incluída na lista das vacinas reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde à data da sua administração no Chile.

Tão assim é que segundo um artigo publicado em Abril deste ano no British Medical Journal que cita precisamente dados de investigadores da Universidade do Chile, a vacina CoronaVac apresenta uma efectividade de 56,5% na prevenção da infecção a COVID-19 duas semanas após a segunda dose, sendo contudo apenas 3% efectiva após a primeira dose. Ou seja, não apresenta protecção após a primeira toma, encontrando-se no limiar da eficácia após um esquema de duas doses. Esta baixa eficácia da vacina foi igualmente reconhecida, também no mês de Abril, pelo Coordenador do Centro para a Prevenção e Controlo de Doenças da República Popular da China (Chinese Centres for Disease Control and Prevention), Dr. Gao Fu, numa rara e inédita declaração à comunicação social que foi posteriormente desmentida (BBC News).

A campanha de vacinação não foi apenas centrada na administração de uma primeira dose de CoronaVac na maioria da população que se revelou profundamente ineficaz. Infelizmente, foi ainda acompanhada de animadas mensagens oficiais anunciando o iminente fim da pandemia e, com base em tal convicção, pelo levantamento das restrições, passando pelo restabelecimento da liberdade de viajar, pela abertura das fronteiras e pelo descerramento dos estabelecimentos comerciais, incluindo o sector da restauração. O ambiente de "fim de pandemia" que se gerou facilitou a rápida desvalorização e consequente não adesão às vitais medidas de prevenção, incluindo o uso de máscara, a etiqueta respiratória, a higienização das mãos e o distanciamento social, por parte da população, que abandonou, de forma jovial, as medidas de prevenção voltando a juntar-se em grandes aglomerados nos períodos festivos como se nada fosse.

Como se a conjugação dos dois factores acima explicados não bastasse, sabe-se agora que a variante brasileira do SARS-CoV-2, inicialmente detectada em Manaus e também conhecida por P.1, tem vindo a disseminar-se e a tornar-se dominante nos países da América do Sul, incluindo o Chile. Uma variante associada a maior transmissibilidade e, provavelmente, a maior gravidade e a menor eficácia da vacina administrada. Sorte ou azar eis a questão, na medida em que permite relembrar que a sorte resulta em grande parte de trabalho árduo e de meticulosa preparação.

Finalmente, nós em Portugal a milhares de quilómetros de distância, com um oceano pelo meio, o que podemos aprender com esta conjugação de factores ocorrida no Chile? Podemos e devemos entender e registar que (i) a pandemia ainda não acabou e que mesmo vacinados temos de respeitar o vírus e a doença e de manter as medidas de prevenção até nos encontrarmos todos devidamente protegidos, (ii) que a vigilância epidemiológica e a monitorização das variantes do vírus em circulação são essenciais no planeamento e na preparação contra a pandemia e (iii) que o escrutínio exigente das principais agências do medicamento não é uma futilidade, mas um investimento na salvaguarda de todos nós. Já o dissemos antes, na senda da OMS, e repetimos "ninguém está seguro enquanto todos não estiverem seguros".

Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.

Filipe Froes é Pneumologista, Consultor da DGS, Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos, Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

Patricia Akester é Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge.

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