"É muito triste este momento do cinema brasileiro"

Enquanto o Cinema Trindade propõe uma retrospetiva a Kléber Mendonça Filho, cineasta dos consagrados <em>Aquarius </em>e<em> Bacarau</em>, é ele quem nos diz do Brasil o seu repúdio com a política cultural do governo brasileiro já a sabotar a energia de uma cinematografia sempre estimulante. Conversa com palavras de mágoa.
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Uma integral de um cineasta que está na berra no Brasil e no mundo inteiro. Kléber Mendonça Filho, cineasta que é o padrinho do movimento pernambucano e que agora recebe homenagem com uma retrospetiva em Portugal, desde esde quinta-feira no Cinema Trindade, no Porto. Portugal que foi o primeiro país a apostar numa retrospetiva, neste caso o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira de 2009, na altura apenas com as suas curtas.

Por estes dias, os portuenses vão poder ver Bacurau, O Som ao Redor, Crítico, Aquarius e um inédito, Bacurau no Mapa, um auto making-of ainda com pouca circulação mundial. Para já, até dia 13, o Trindade exibe Bacurau e a sua visão de bastidores, uma exaltante revisitação dos ambientes de rodagem. Um filme de uma hora que só faz sentido depois do visionamento de Aquarius, a longa que foi premiada em Cannes e feita a meias com o amigo e colaborador Juliano Dornelles.

Para quem preza o efeito da novidade, é realmente o prato forte desta mostra: "Tinha muita curiosidade em ver o material que filmámos com várias câmaras e iPhones durante a rodagem do Bacurau. Quis partilhar esses momentos de felicidade como um documento histórico e isso é algo que penso sempre de uma maneira muito passional. Devo dizer que quer nas curtas, quer nas longas, o momento das filmagens foi sempre uma experiência feliz. Além do mais, Bacurau no Mapa mostra de uma forma inegável e irrefutável a maneira como era possível fazer uma grande produção de cinema dando muitos empregos aos profissionais. Nesse sentido, não deixa de ser uma resposta aos imbecis da extrema-direita que parecem acreditar que os artistas não trabalham. A cultura não é uma brincadeira. O que é triste é que fiz este filme para mostrar artistas a trabalhar", diz-nos de uma chamada do Recife.

Sobre o "peso" de uma retrospetiva, salienta haver um lado simbólico nesse olhar: "É preciso não esquecer que em 2009, quando o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira fez a retrospetiva das minhas curtas eu ainda não tinha feito nenhuma longa, estava precisamente a preparar-me para filmar O Som ao Redor e essa retrospetiva foi importante para mim para repensar o meu trabalho. Mas agora é um momento tão belo como estranho. Por um lado, consegue colocar em sequência trabalhos que já fazem parte de um passado, sobretudo num momento em que estou a pensar nos filmes que quero fazer no futuro. Mas fico sempre lisonjeado e feliz que seja num cinema de rua, como é o Trindade, na cidade do Porto. Vai ser muito bom".

Quem este mês frequentar esta retrospetiva vai poder deparar com um cinema sem temas nem géneros definidos - esse é um dos sortilégios de Kléber. Talvez o que unifique estas obras, três ficções e dois documentários, seja uma cartilha cinéfila. Nota-se que é um cineasta que coloca a o seu conhecimento de uma história do cinema. Por exemplo, em O Som ao Redor, a tabuada de ambientes lembra John Carpenter, enquanto em Bacurau, a espaços, somos confrontados com memórias do cinema de série B mais refundido. "Não creio que seja impossível cinema que me agrade muito feito por alguém que tenha uma distância com a própria história do cinema ou que não tenha interesse cinéfilo. Porém, eu tenho um interesse muito grande. O cinema é o que me fez querer fazer cinema... Isso está na minha obra. Na minha opinião, o cinema não pode ter modelos".

E numa altura em que o Governo brasileiro parece querer encerrar a Cinemateca Brasileira, Kléber não fica em silêncio. O cineasta brasileiro com maior cartel no panorama de festivais internacional deixa um alerta exaltado: "A produção audiovisual brasileira está a começar a parar. A Cinemateca e o ANCINE [o instituto do audiovisual no Brasil] é uma máquina a ser sabotada pelos próprios administradores. Ao ser sabotada está a inviabilizar toda a produção de um país, quer a nível financeiro, quer a nível criativo. O esquema de incentivo cultural a cada área era à base da confiança e tudo isso foi destruído. Estamos num momento em que toda a classe do cinema está confusa e sem entender quais os próximos passos. São muitos os que estão a tentar filmar com dinheiro de fora do Brasil. Mas o que me preocupa são os cineastas das novas gerações, como é que eles agora podem trabalhar... Precisamente num momento em que estávamos a conseguir, em velocidade de cruzeiro, uma diversidade que era nova. Uma diversidade regional, temática, de representação de classe, raça e de orientação sexual. Isto agora é muito triste o que se passa... Foi um movimento claramente estancado e parado. Observo isso por dentro! Projetos que estavam em andamento foram cancelados! É um momento histórico que desejo que passe o mais rápido possível e que sobrevivemos todos!".

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