As honras em Veneza aceleraram para esta quinta-feira a estreia de Listen - Ouve-me nas salas portuguesas, e é bem possível que este seja um filme capaz de suscitar mais do que a mera curiosidade mediática que, em tempos de pandemia, deixa o espectador indeciso à porta do cinema..Podemos dizer: merece que se entre, de coração disponível e mente focada. Trata-se de uma coprodução luso-britânica com coragem de meter a colher num tema incómodo da sociedade britânica, sem ceder a romantismos e deferências de olhar estrangeiro, ao mesmo tempo que enquadra a sua linguagem na escola do realismo inglês..Ana Rocha de Sousa estudou cinema em Londres, recebeu de Mike Leigh o elogio a uma das curtas-metragens que realizou enquanto estudante, e investigou muito a realidade das adoções forçadas para conceber a história de um casal de emigrantes portugueses na capital britânica que, de um dia para o outro, e devido a um lapso terrível, viu os seus três filhos serem levados pelos serviços sociais. Não é apenas o retrato de uma família que aqui se encontra, mas o eco de muitas histórias que se escondem nos subúrbios de Londres, com gente que mal tem dinheiro para comer a não conseguir suportar os custos de uma defesa legal..Ao lado de Ruben Garcia, no papel do pai, Lúcia Moniz é a mãe que se entrega, em plenitude, à expressão de uma dor incomensurável num filme que não foge à ambiguidade das aparências e agarra, através da personagem de uma menina surda, filha do casal, a delicadeza do olhar infantil. Ana Rocha sabe bem como apontar a lente à tempestade que se abateu sobre um teto frágil, e é a partir da devastação interior das personagens que explora a (in)sensibilidade de um sistema implacável. Eis a revelação de uma cineasta portuguesa..Vamos recuar um pouco: a Ana tinha uma carreira como atriz, licenciou-se em Belas-Artes e, a certa altura, foi para a London Film School estudar realização. O que é que a fez passar para trás da câmara? Ana Rocha de Sousa - Ir para um mestrado em realização foi ganhar consciência de que aí teria um espaço para aplicar tudo o que tinha feito e aprendido ao longo dos anos. Percebi que era no cinema que podia conjugar as artes plásticas com a interpretação. Ou seja, dei-me conta de que era verdadeiramente importante para mim, porque não me sentia preenchida com nenhuma das áreas. Por isso, tive de repensar a minha vida num dado momento e cheguei à conclusão de que, se esse era o caminho, dificilmente iria ter possibilidades cá, desde logo por ter um currículo tão expressivo na televisão. Decidi que, a ser cinema, tinha de ir embora e começar do zero onde me fosse possível aprender tudo e não sentir nenhum entrave. Era, de facto, uma experiência que eu queria viver, essa coisa de deixar tudo e ir... Sempre tive esse sonho! Perguntava-me: como é que será, aquelas pessoas que têm a coragem de agarrar em tudo, deitar fora, dar, vender, esquecer e ir? Tinha muito medo disso, mas ao mesmo tempo tinha a ambição. E disse a mim própria, "é agora!", porque mais tarde poderia ficar sem oportunidade de o fazer....Que idade tinha quando tomou essa decisão de mudança para Londres? A.R.S. - Eu não fui naquela idade mais óbvia dos 20 e picos, fui já com 30 anos. Em 2010..Ir com essa idade também muda a perspetiva em si, é mais amadurecida... A.R.S. -Muda, sem dúvida. Muda a forma como aproveitamos aquilo que nos ensinam, como estamos disponíveis para esses ensinamentos, quaisquer que sejam. E mais ainda quando tivemos de vender tudo para poder viver aquele sonho... Portanto, eu sei que estive nesta experiência de uma maneira diferente do que seria se tivesse 20 anos..E um dia dá-se um encontro feliz com um dos grandes realizadores ingleses, Mike Leigh. Como é que aconteceu? A.R.S. - Na altura, o Mike Leigh era diretor da escola, ou seja, não tinha uma interação diária connosco. Aparecia muito raramente, às vezes dava-nos uns workshops e tal, e essa vivência é sempre mais distante. Ora o meu encontro com o Mike Leigh acontece de uma forma mais profunda... - bem, mais "profunda", calma! [risos] - digamos, esse momento que senti de forma mais profunda foi quando ele, juntamente com o Ben Gibson e algumas pessoas da escola, escolhe o meu filme documental [Laundriness, 2011] para ser apresentado à London Film Society. Eram três ou quatro filmes e escolheram o meu! Posso dizer que mesmo há dias recebi um e-mail de um português que estudou na London Film School até há pouco tempo e que, a propósito dos prémios [em Veneza], dizia: "Ana, não sei se sabes, mas ainda continuam a passar o teu filme no terceiro período como exemplo dos documentários que devemos fazer." Isto para mim é muito bonito... Vou sabendo assim, esporadicamente, que há um professor ou outro que se lembra daquele filme e o mostra nas aulas..Ao ver Listen, pensamos imediatamente no cinema de Ken Loach, no seu realismo social. Mas há também uma forte conotação com o cinema do próprio Leigh, na intensidade da expressão dos atores... A.R.S. - Exato. O Mike Leigh é muito mais influência para mim do que o Ken Loach..Em que medida é que Leigh a influenciou nesse trabalho com os atores, que de resto fica evidente no filme? A.R.S. - Antes de mais, eu também me identifico com o realismo do Ken Loach, mas existe no Mike Leigh, precisamente, uma liberdade no trabalho com os atores - sobretudo nos filmes antigos, em que ele construía um guião com estes - que me atrai mais. É muito diferente um trabalho de marcação absoluta daquele em que se pergunta ao ator: onde é que vais estar nesta cena? O meu sonho verdadeiro e honesto é poder fazer um filme em que tenha tempo e liberdade para construir algo com os atores, mesmo havendo um guião prévio, de maneira a poder ser conduzida por eles. Isso acontece em alguns momentos fundamentais do Listen, mas seria um método muito arriscado quando se tem pouquíssimo tempo e dinheiro, e ainda por cima a filmar em Inglaterra, onde é tudo muito caro....Em relação a esses momentos, estamos a falar de uma espécie de improviso? A.R.S. - Sim, é um improviso que exige sacrificar alguma coisa, tenho noção disso. Acaba por mexer com o trabalho de outros departamentos, traz instabilidade e insegurança para pessoas que gostam de ter tudo definido. Mas aí também mexe comigo porque quero ter a certeza de que, no fim, a luz bate certo, e às vezes são se pode ter tudo... Não podendo ter tudo, o que eu quero é ter um trabalho de atores brilhante e excelente..E chegámos ao "departamento" da Lúcia. Como é que descreve a experiência de rodagem do Listen, tendo em conta a gestão deste método de que fala a Ana? Lúcia Moniz - Tenho estado a acenar que "sim" a muita coisa que a Ana disse porque de facto foi assim. Nós tínhamos um guião, raramente nos desviámos dele - só numa ou noutra situação em que, já havia takes feitos, e a Ana disse-nos "agora façam o que entenderem!" [risos] -, havia um espaço, interior ou exterior, e aí fazíamos a cena como já tínhamos experimentado organicamente pela leitura do texto. Portanto, havia sempre uma proposta que partia de nós, atores..Como é que se preparou para esta personagem tão pesada no seu sofrimento? L.M. - Houve fases. A primeira foi obter informação sobre estes casos, e há muito material, desde documentários e reportagens a vídeos reais, que acabei por encontrar, que mostram a retirada de crianças aos pais... Isso foi altamente chocante e perturbador, mas fez parte do processo de conhecimento dessa realidade. Não a imaginarmos apenas....Há um efeito de catarse... L.M. - Completamente. A Ana é testemunha desse efeito, porque não foi só individual, foi algo que passou para o plateau..E qual foi a outra fase? L.M. - Depois fiz uma coisa que, apesar de não ter sido a primeira vez, neste caso específico foi particularmente importante: levei o guião e a personagem à minha psicóloga e trabalhámos muito os comportamentos e todo o evoluir deste capítulo da vida de uma mulher... Uma mulher que passa por um trauma, por um estado de choque. É algo que quis levar ao pormenor para ser avaliado, e isso revelou-se muito interessante..Geralmente os filmes que retratam emigrantes portugueses tendem para uma certa leveza, sendo ou não comédias. Quão arriscado foi optar por este realismo de denúncia? A.R.S. - Foi penoso, porque é muito difícil um olhar estrangeiro ser acolhido num país que faz por esconder esta temática. O filme foi escrito em 2016, rodámos apenas em 2019 e chega aos cinemas em 2020... Acho que a demora diz tudo. Foi o Rodrigo Areias e a [produtora] Bando à Parte que assumiram comigo essa luta de ir tentando, apesar de vermos muitas portas a fecharem-se, por ser um tema que as pessoas não querem efetivamente tratar. Primeiro porque não lhes convém abordar em termos legais, e depois porque existe toda uma teoria do silêncio à volta destes casos, o que torna difícil o acesso à informação. Já para não dizer que, ainda por cima, se tratava de uma primeira obra..A própria Lúcia encontra-se aqui num registo muito diferente daquele em que a vimos no filme O Amor Acontece [2003]. Em algum momento pensou nessa outra jovem emigrante que conquista o coração de Colin Firth? L.M. - Há um espaço tão grande de tempo que eu nem senti como uma transição de registo. Nem pensei nisso, sequer! São coisas completamente distintas e personagens com vivências que não comunicam, apesar de serem ambas emigrantes. De um lado uma comédia romântica, história bonita e leve, do outro o realismo mais duro....A história de Listen resulta da pesquisa de um caso ou de vários? A.R.S. - Estão aqui várias histórias. Baseei-me mesmo na realidade das adoções forçadas, centrada em algumas famílias portuguesas, mas não só. É preciso também perceber que isto não acontece só a portugueses, não se trata de perseguição... E digo mais: não há sequer uma perseguição a famílias estrangeiras. O que acontece é que a forma como o sistema está montado e estruturado acaba por atingir mais as famílias que estão numa situação económica muito frágil e que não têm meios para se defender. Lá está, não implica que sejam estrangeiras, também acontece a famílias da classe baixa inglesa..Como é que acha que o filme vai ser recebido em Inglaterra? A.R.S. - Bem, a primeira reação que tive a esse nível foram oito minutos em direto com a BBC, o que não me pareceu nada mal! E quando digo isto é no sentido de fazerem uma reportagem em Veneza podendo ter ido buscar outros filmes a concurso, e optaram pelo meu, que....Põe o dedo numa ferida... A.R.S. - Exato. Senti que houve ali, de facto, um interesse por este filme em particular devido ao tema, apesar de ser tão polémico em Inglaterra. Portanto, já sabemos como foi recebido ainda enquanto guião, essa penosa fase anterior, e até agora, em relação às perspetivas de outros países, Inglaterra é a que tem a reação mais negativa, mais contra. E por essa razão decidimos que o filme há de correr o mundo primeiro.