E foi mesmo uma coisa completamente diferente
É habitual dizer-se que os Monty Python são os Beatles do humor, e é curioso que a data de estreia seja a mesma para os dois grupos: 5 de outubro.
Os Monty Python estrearam-se na BBC a 5 de outubro de 1969 e os Beatles lançaram o seu primeiro single, Love Me Do, a 5 de outubro de 1962 (curiosamente, o dia em que eu nasci; infelizmente não se pode dizer que eu seja os Beatles de nada, nem os Monty Python do que quer que seja; sou, sim, com muita alegria, também acrescida pela coincidência da data, beatleano, montypythoniano e, já agora, republicano).
A comparação não é nada disparatada. A revolução que os Beatles fizeram na música e na cultura pop, fizeram os Monty Python no humor, na televisão e também na cultura popular, uns anos depois, na mesma década de 1960 e a partir do mesmo sítio: Inglaterra.
Uma revolução mundial e televisionada cujo legado chegou até aos nossos dias com uma vitalidade impressionante, num e noutro caso.
A prova mais evidente da força da marca que os Monty Python deixaram é a transformação do seu nome numa adjetivação para todos os que se inscreveram depois no seu legado, humoristas e fãs: tornámo-nos todos montypythianos.
Lembro-me do impacto que me causou o primeiro episódio do Flying Circus, que se estreou em Portugal no final dos anos 1970, logo a seguir à nossa revolução de Abril.
Estreou-se na RTP com o nada prometedor nome Os Malucos do Circo, mas para o muito jovem telespectador que eu era, ávido de novidades, tudo o que passava na única estação de televisão que existia era para ser visto, da mira técnica ao hino nacional a fechar a emissão.
Eu adorava os Parodiantes de Lisboa, que ouvia religiosamente, na rádio, com os primeiros rasgos de nonsense que a dupla Patilhas e Ventoínha assegurava. Na televisão tinha-se estreado o inovador Nicolau no País das Maravilhas, de Nicolau Breyner, com a dupla Senhor Contente e Senhor Feliz, que Nicolau fazia com um muito jovem Herman José.
Mas nada me tinha preparado para aquilo. Não tinha nenhuma referência, nem tinha qualquer conhecimento da sua estreia, uns anos antes, na BBC, nunca tinha ouvido falar deles.
Ao ver o náufrago a chegar à praia e anunciar "It's..." estava muito longe de imaginar que iria ver meia hora de televisão que para sempre mudaria a minha vida. Foi humor à primeira vista.
Lembro-me de que no dia seguinte, no Liceu Pedro Nunes, o meu grupo de amigos estava numa excitação coletiva pela descoberta daquele
óvni, objeto audiovisual não identificado. Não nos cansávamos de repetir todos os sketches e muito em particular o da piada assassina, eleito o favorito do nosso grupo.Toda a série foi vista num culto fervoroso com a descrição dos melhores sketches a ser repetida dezenas de vezes por todos nós na semana a seguir à passagem de cada episódio.
É curioso hoje pensar que os episódios não eram repetidos e que não havia maneira de os voltar a ver tão cedo (a não ser que a RTP os repetisse, o que não aconteceu durante muitos anos).
A série ficou por isso gravada unicamente na memória de toda a minha geração durante anos, pelo menos até à comercialização dos videogravadores nos anos oitenta, que permitiram o visionamento das cassetes com todas as temporadas (prenda que não resisti a oferecer a mim próprio numa ida a Londres).
Pelo meio tinham estreado os filmes, todos menosprezados pela crítica de cinema, todos imediatamente transformados em filmes de culto.
A Vida de Brian estará sempre em qualquer lista das melhores e mais revolucionárias comédias do cinema de todos os tempos.
Em Portugal, a influência dos Monty Python foi grande, mas na altura foi muito maior nos espectadores do que nos humoristas no ativo. A influência nos humoristas só é assinalável nas gerações que surgem nos anos noventa e que terão visto os Monty Python já em videocassete e nos seus filmes no cinema.
A grande exceção é Herman José, que logo no seu primeiro programa, O Tal Canal, em 1983, faz à nossa escala o que os Monty Python fizeram na BBC, a subversão completa dos códigos estabelecidos dos programas de humor em televisão. Foi o nosso 25 de Abril do humor televisivo.
Quando fundámos as Produções Fictícias, no início da década de noventa, a nossa filiação humorística tinha muitas influências, mas havia duas absolutamente predominantes: por cá, Herman José (com que tivemos a sorte de começar a trabalhar); de fora, os Monty Python.
Em 1996-97 fui assessor criativo da direção de programas da RTP (era diretor-geral Joaquim Furtado). Nessa altura propus ao diretor de programas com quem trabalhava diretamente, Joaquim Vieira, um espaço de exibição de clássicos da TV na RTP 2 (uma espécie de RTP Memória avant la lettre). Nele seriam exibidas séries como The Twilight Zone ou Hitchcock Apresenta, mas para estrear esse espaço de programação escolhemos, como não podia deixar de ser, Monty Python's Flying Circus. Foi a segunda vez que passou na televisão portuguesa, cerca de vinte anos depois de ter passado pela primeira vez.
Lembro-me da alegria que senti por podermos exibir de novo toda a série na RTP e de pensar que poderia haver jovens como a minha geração dos anos setenta que ainda não tinham visto a série (embora nesta altura já devessem ter ouvido falar muito dela).
Os Monty Python ficaram sempre para mim uma referência incontornável e continuei a seguir com grande curiosidade e admiração o percurso de cada um deles nas diferentes coisas que foram fazendo.
Estava muito longe de imaginar que me seria oferecida de bandeja a possibilidade de conhecer um deles.
Aconteceu em 2006. Estava em casa a jantar e recebi uma chamada do Jorge Salavisa, nessa altura diretor do Teatro Municipal São Luiz: "Nuno, estamos aqui com o Terry Jones, dos Monty Python, e vamos agora jantar. Pensámos que se calhar gostarias de vir jantar connosco e conhecer o Terry. Queres vir?"
Quantas vezes acontece na nossa vida podermos conversar com uma pessoa que realmente admiramos e que calha ser uma celebridade mundial?
O Terry não podia ser mais simpático e desprovido de vedetismo. Tive logo a oportunidade de lhe perguntar uma série de coisas sobre a epopeia dos Monty Python, a que ele respondeu sempre com enorme disponibilidade, ironia e graça.
Não foi a única vez que nos encontrámos. Haveríamos de nos ver várias vezes durante o período em que ele esteve cá a encenar a sua peça Evil Machines (com música do Luís Tinoco) e também no lançamento da autografia dos Monty Python (que apresentei com o Nuno Markl, a convite do editor António Lobato de Faria). Almocei e jantei com ele diversas vezes, levei-o ao Museu de Arte Antiga para ele ver o quadro do Bosch As Tentações de Santo Antão, que ele contemplou fascinado durante uns bons quinze minutos.
Adorou ver os narigudos portugueses, bárbaros do sul, retratados pelos japoneses nos biombos namban.
Um tipo encantador, que achava inacreditável que quase cinquenta nos depois do Flying Circus ainda houvesse pessoas num país como Portugal a falar disso que eles tinham feito num momento de "distração irrepetível" de algum executivo da BBC.
Contou-me histórias incríveis da swinging London desses tempos, das festas onde se cruzavam com o Paul e o John e o David e todos os outros, como se fosse a malta lá do bairro, que de facto era. E de como o George salvou os Python produzindo A Vida de Brian.
Um dos meus heróis, o Terry Jones, a sorte grande de poder ter falado com ele e não me ter desiludido nem um pouco. Um conversador maravilhoso, despretensioso e divertido. Ainda tive o bónus de me ter apresentado ao Michael Palin na estreia da peça. Chegou a gravar uma mensagem de boa sorte para o PF TV, antecessor do canal Q e seu balão de ensaio. E deixou-me o seu telemóvel, com a maior descontração.
Hoje, infelizmente o Terry Jones está afetado por demência precoce e não poderei ter o prazer de voltar a falar com ele. O Michael Palin tem estado sempre do lado dele numa demonstração de amizade que é comovente.
Foram tão inspiradores, os Monty Python, para tanta gente. As comemorações dos 50 anos acontecem um pouco por todo o mundo. A mais espetacular, como não podia deixar de ser, acontece em Inglaterra. Tem vindo a ser preparada há uns anos e tem por esta data o seu ponto mais alto. Inclui uma recriação contemporânea multimédia do sketch do Ministry of Silly Walks ( Ministério dos Andares Patetas) em que se confunde de forma original o walk the talk com o talk the walk; e também uma recriação do célebre sketch do papagaio morto, que nesta versão para uns é a rainha e para outros é o parlamento, a democracia inglesa ou o próprio Reino Unido.
As comemorações do cinquentenário levam o nome genérico de Brexit.