É ano de mudar o tom. Há novas vozes a cantar a sorte grande no Natal
É início de dezembro, já há luzes a fulgir nas ruas de Lisboa. No cimo das escadas do metro do Chiado, um homem senta-se com um placard coberto de bilhetes atrás de si. "É a lotaria, é a lotaria", grita para que comprem os bilhetes mágicos. É a Lotaria de Natal, um jogo lançado há 120 anos pela Santa Casa da Misericórdia. Não muito longe dali, no Largo Trindade Coelho, dentro de uma sala de cadeiras prontas para o espetáculo, ergue-se um palco com seis esferas giratórias em ponto grande e, à frente delas, os pregoeiros já ensaiam os passos para o dia da extração - a 26 de dezembro.
São uma figura desde sempre conhecida pelos que seguem esta Lotaria. Cantam números: dezenas de milhar, unidades de milhar, centenas, dezenas, unidades e, por fim, os prémios. Vozes firmes, cujo som se faz ouvir em toda a sala. Há quase duas décadas que não entravam novas. Eram dez, mas 2020 encerra com mais três: duas mulheres e um homem que vão cantar a sorte grande. No primeiro trimestre de 2021, há quatro outras novas para treinar. Um ofício a rejuvenescer.
"Têm de esticar bem o braço e virar para o júri depois de o número ser cantado." Margarida Boura, a pregoeira mais antiga no ativo, vai dando conselhos aos novatos. Há 34 anos que é funcionária da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Passados dois de serviço, responde ao concurso para novos pregoeiros para as lotarias, um posto, até então, destinado apenas a homens. Juntamente com outras mulheres, nesse ano de 1988, mudou a tradição. "Acho que trouxemos um bocadinho de juventude e inovação ao ato, que era feito com ar mais pesado. Nós viemos trazer uma leveza e, na altura, uma frescura", recorda. "Por umas razões e por outras", as suas colegas foram saindo. Desses tempos, resta apenas o canto de Margarida.
Não largou o ofício, dando voz a diversas lotarias. Embora anseie especialmente pela do Natal, "a mais especial" e também "a mais esperada" pelo público. "É aquela que cria sempre muita expectativa no público, apesar de o Euromilhões dar prémios idênticos. As pessoas pegam nas frações, ficam ali a ver... É muito bonito."
Mais de três décadas a cantar prémios deram-lhe, agora, o crachá de conselheira. Aos novos pregoeiros apela a que "pensem na missão", mais do que no regulamento que têm de seguir. "São o veículo de transmissão de duas formas, entre o apostador que vai mudar tudo na sua vida porque vai receber muito dinheiro e as pessoas que estão a precisar de nós no dia-a-dia." Dia 26, é a estreia de Pedro Esteves. Depois do primeiro ensaio, está surpreendido com a ausência de vestígios de nervosismo.
Depois de 52 candidaturas ao novo concurso para pregoeiros, Pedro chegou ao pódio. Funcionário da Santa Casa há dois anos, onde exerce na área dos jogos, na equipa do Placard, volta ao papel de novato. Um dia, neste ano, recebeu um e-mail interno na sua caixa de correio, com o anúncio: a Santa Casa procurava novas vozes. "Não pensei duas vezes." Afinal, já há tanto tempo que lhe gabavam "a voz radiofónica". "Com tantas pessoas a dizerem, achei realmente que tivessem razão e, quando surgiu esta hipótese, creio que era a minha oportunidade."
O concurso, esse, "foi muito rápido". Aconteceu em menos de um mês, desde o momento em que se candidatou até ao momento da seleção. Mas "não foi nada fácil". Passou por duas. A primeira, via Teams, "em que nos foram feitas perguntas sobre o regulamento" e esta, "sinceramente, não correu muito bem". A teoria não foi o seu forte, admite. Depois, "deram-me a possibilidade de vir aqui e ver a minha voz, a minha postura". Foi o suficiente para lhe confiaram a tarefa de, no dia 26, cantar para todo o país a sorte grande de alguém.
Regras e mais regras. Pedro temeu o regulamento na hora decisiva, mas é por ele que terá de se reger para cumprir este ofício. Em palco, no dia da nossa visita ao primeiro ensaio, revia-se cada regra, uma a uma: todos devem fazer os movimentos em uníssono, retirar a bola com o mesmo braço, sempre esticado, ouvir cantar o número, virar a mão (e só a mão) para o júri da Lotaria o verificar, voltar a virar o número que seguram para o público e inserir a bola novamente na esfera que gira a todo o vapor.
O mais difícil, diz o novato, "o à-vontade que temos de ter perante o público e perante as câmaras". "Se se erra num procedimento... No Natal, então, para o país inteiro, há uma grande pressão para a coisa sair bem logo à primeira." Mas nem tudo deve ser rígido neste procedimento. Margarida Boura conta que os pregoeiros devem ter "a preocupação de projetar melhor a voz, de dar um sorriso, de demonstrar a alegria que é o ato em si". "Porque estamos a atribuir dinheiro a pessoas", justifica.
Com os anos, aliás, os ombros dos vários pregoeiros foram relaxando da postura militarista imposta no início. "Temos vindo a mudar, no sentido de a gente tornar o ato um bocadinho mais apelativo até aos jovens. Porque inicialmente eram regras muito rígidas, em que nós entrávamos, tínhamos de estar sisudos, a fazer tudo muito alinhados, nada de sair daquele ritual. E agora não: com as formações que vamos tendo com pessoas na área da dicção e da postura, fomos melhorando e fomos tornando o ato um bocadinho menos rígido, para estarmos mais descontraídos", conta Margarida Boura.
E até na hora de cantar a Lotaria há espaço para erros. Margarida lembra alguns momentos caricatos. Uma vez, conta, "numa extração especial, onde estava a administração toda na frente, tirei a bola dos prémios que me escorregou da mão. Mas correu muito bem, porque a bola não caiu cá para baixo, caiu no palco e, como é de borracha, saltou de volta para a minha mão". O momento "deu azo a riso e algumas pessoas até bateram palmas".
O importante, recorda, "é gostar e sentir, sentir a Lotaria, vestir a camisola". Tudo o resto, as regras e a forma de responder aos imprevistos, são acessórios. "Existem crianças que precisam de todos nós, existem idosos, existem sem-abrigo, toda uma população que precisa muito de nós. E, quando estamos a fazer isto, não estamos a encher o nosso ego, mas sim a pensar dos outros."
O sorteio da Lotaria de Natal é público, transmitido na televisão, e realiza-se todos os anos com a presença de um júri. Neste ano, a visualização da extração ao vivo, que acontece na sala de extrações da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, está de lugares limitados. "Neste ano, vai ser um bocadinho triste olharmos para as cadeiras e não termos o público [habitual]", lamenta Margarida. Mas remata: "O que importa é pensar que vamos ter o país a assistir pelo ecrã."